Espero poder confiar na Justiça

A Justiça não se redime nem merece ser condenada só porque deteve José Sócrates para interrogatório. E o regime também não está em causa só porque existe este caso e estas suspeitas 

Numa entrevista que deu ao jornal Liberation em 2007, o então primeiro-ministro José Sócrates definiu-me como o seu "melhor inimigo". Passaram quase sete anos, muita água debaixo das pontes, todos os motivos que então tinha para, nessa altura quase sozinho, criticar o primeiro-ministro, reforçaram-se, mas ao contrário do que percebo pelo que leio nas redes sociais não fui a correr abrir uma garrafa de espumante quando soube da notícia da sua detenção. Por duas razões. Primeiro, porque uma detenção para interrogatório não é uma condenação em tribunal, não é um veredicto de culpabilidade, e por isso só posso olhar para Sócrates como suspeito, ponto final. Eu e qualquer pessoa. Depois, porque percebi que, ao fazer a detenção no aeroporto, a Justiça portuguesa colocou a fasquia muito alta, passou a enfrentar um desafio ainda maior e mais difícil, pelo que só espero que tenha um caso sólido.
Brevemente, alguns comentários.
Primeiro que tudo, não faço parte dos que se indignam e incomodam com pretensos excessos da Justiça. Incomodei-me e incomodo-me, isso sim, com a forma como muitos poderosos conseguiram, ao longo dos tempos, graças a bons advogados, a manobras dilatórias ou a expedientes inconfessáveis, escapar às malhas da Justiça. Se agora a Justiça mostra mais determinação e arrojo na sua actuação não fico de repente preocupado, nem passo a achar que está a exagerar. Vi, isso sim, no caso Face Oculta, uma Justiça que actuou com mais prontidão e competência do que em muitos casos anteriores, onde sempre se suspeitou de uma investigação torpedeada, incompleta ou incompetente, como aconteceu em processos como o do Freeport ou o dos submarinos. O estranho não é em Portugal a Justiça ser agora severa com os poderosos – o estranho é ela ter quase sempre falhado, mesmo em processos que deram condenações noutros países. Se isso está a mudar, só posso saudá-lo com o maior entusiasmo.
De resto, não sei porque foi a polícia deter José Sócrates ao aeroporto em vez de enviar uma notificação para a sua residência, mas apenas vejo nessa forma de actuar um padrão semelhante ao que encontro noutros países (em Espanha, por exemplo), porventura relacionado com a necessidade de deter todos os suspeitos ao mesmo tempo, pelas razões que facilmente se intuem. Não sei se foi essa a motivação do juiz Carlos Alexandre, mas isso não me leva a repetir alguns comentários que vi e ouvi por aí.
Depois tenho a noção clara de que esta detenção, pelo seu impacto, coloca imensos desafios ao nosso sistema de investigação e judicial. Vamos estar todos com imensa atenção, até porque se trata de um processo que toca no coração do sistema político e não vai deixar de afectar o principal partido da oposição. Mas há um aspecto que quero sublinhar: o regime não fica em causa se a Justiça não conseguir condenar José Sócrates. O regime estaria sim em causa se, face a suspeitas pertinentes, José Sócrates escapasse por a Justiça ter medo o afrontar. Medo ou reverência ou respeitinho. Infelizmente houve um episódio no nosso passado recente em que ficou a suspeita de que podia e devia ter sido feito mais: refiro-me ao episódio da destruição das escutas do caso Face Oculta com base numa interpretação jurídica duvidosíssima.
Uma nota final para o que parece estar no centro das investigações, isto é, a casa de Paris e os meios de vida de José Sócrates. É bom que esta investigação possa esclarecer os factos e as suspeitas que já vieram a público. Um dos mistérios que ensombrou a nossa vida política recente foi a evidente desproporção entre o estilo de vida de José Sócrates e os rendimentos conhecidos de um deputado, secretário de Estado, ministro, mesmo primeiro-ministro. Muitas vezes teve ele de se justificar, muitas vezes ficou irritado quando a imprensa mostrava a forma como vivia (isso aconteceu especialmente no relativo à sua vida em Paris), várias vezes colocou processos a jornais por andarem a verificar a forma como obtivera as suas propriedades. Talvez este caso, esta investigação, constitua a oportunidade definitiva para José Sócrates esclarecer todas essas dúvidas, todas essas sombras que o perseguem.
Termino com um apelo singelo: para que a Justiça possa funcionar, faça-se o menos possível de política com esta investigação. Eu sei que o caso não pode nem deve ser ignorado, mas também não devem os políticos fazer aquilo que pedem aos jornalistas para não fazerem: tratarem já como culpado quem é apenas suspeito.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António