E se as notas não contassem para entrar na Universidade?
Todos sabemos que tirar um curso de economia não é igual em todas as universidades, e não há razão para as universidades não terem autonomia para fixar os seus critérios de acesso.
A Laura é uma jovem de 18 anos que este ano não entrou no curso de direito por apenas cinco centésimas. Isso mesmo: 0,05 pontos afastaram-na do curso que ambicionava. É a vida? É, mas não tinha de ser. É que o sistema que a excluiu por cinco centésimas está manipulado: 70% da nota da candidatura é atribuída pela escola ao longo do secundário, e a Laura foi ultrapassada por jovens que, ao contrário dela, foram favorecidos pelos professores que deram um jeitinho e lhes subiram as médias.
Obviamente, a Laura não é a primeira jovem a quem isto sucedeu. E, infelizmente, não será também a última. A manipulação das regras é uma prática recorrente e esse é, aliás, um diagnóstico consolidado: nos jornais, nos estudos académicos e ao mais alto nível. Comparando as notas internas (escolas) com as notas externas (exames), sabemos que há muitos professores que tendem a favorecer os seus alunos. Comparando as escolas públicas com as privadas,sabemos que, em média, estas últimas tendem a beneficiar quem as frequenta. E sabemos que toda a gente sabe e fecha os olhos, porque até um organismo como o Conselho Nacional de Educação denuncia esta fraude e ninguém a vem desmentir.
Ora, fechar os olhos não é resposta. O ensino secundário e o ensino superior, que deviam permanecer autónomos, foram amarrados um ao outro por via destas regras de acesso. Com elas, até que ponto se condicionou a aprendizagem no ensino secundário à realização de exames de elevadíssimo risco (entrar ou não num curso)? Com a sua manipulação, quantos jovens passaram à frente de outros indevidamente? E quantos ficaram para trás injustamente? Não há números. Mas há a certeza de que foram muitos, demasiados. Portanto, o ponto é este: deve-se defender um sistema de acesso ao ensino superior dependente do secundário e baseado em critérios que, sendo comuns para todos, são aplicados de forma diferente em cada escola e são, por isso, sujeitos a manipulação? Não se deve. Até porque há alternativas.
Olhando para o que acontece na Europa (a nível nacional e regional), o cenário geral é bastante diferente do português (cf. relatório Eurydice). Em 15 sistemas de ensino, o acesso é aberto, pelo que basta concluir com sucesso o ensino secundário para entrar num curso superior. E na maioria dos sistemas, compete às próprias instituições de ensino superior fazer a selecção dos alunos – seja por via das suas notas do secundário, seja com base em critérios ou exames próprios da instituição. Veja-se França, país que tantas vezes nos serviu de exemplo, e onde o acesso é livre para as universidades: no 1.º ano do curso entram centenas de alunos e a selecção faz-se na passagem para o 2º ano – os estudantes são ordenados em função dos seus resultados e só uma determinada percentagem passa ao 2.º ano. Não há nada mais justo. Ninguém é excluído à partida e todos têm as mesmas oportunidades: as mesmas aulas, os mesmos professores, os mesmos exames e os mesmos critérios de avaliação.
Não quero com isto dizer que temos de ser como os franceses. Apenas digo que temos margem para tornar o nosso acesso ao ensino superior mais justo. Seja por via de acesso livre (entram todos os que concluírem o secundário) ou por via de dar às instituições autonomia para escolher os alunos (o que me parece mais exequível). Todos sabemos que tirar um curso de economia, direito ou sociologia não é igual em todas as universidades, pelo que não há razão para que as universidades não terem autonomia para fixar os seus critérios de acesso.
Sei o que dirão os críticos: se as instituições puderem escolher, vão discriminar alunos por critérios sociais. É o argumento que surge sempre que se fala em liberdade e autonomia. E é um argumento duplamente enganador. Primeiro, porque a autonomia de uma instituição para fixar critérios não é um poder absoluto em país nenhum: a aprovação desses critérios e a monitorização da sua implementação por parte de uma entidade ligada ao ministério são sempre necessárias – seria inaceitável, por exemplo, uma instituição determinar que só aceita estudantes loiros.
Segundo, porque a discriminação social já acontece com o actual sistema de acesso, imposta pelo próprio Estado. E é fácil perceber porquê. Sendo um facto estatístico que o desempenho dos alunos está fortemente relacionado com o seu perfil socioecónomico, isso significa que ter boas notas é mais difícil para um aluno cujos pais são pobres e têm baixas qualificações. Ora, ao fazer depender o acesso ao superior das notas escolares, por definição, estamos a reduzir as possibilidades de um aluno desfavorecido entrar no curso que ambiciona e para o qual poderá ter mais vocação que outros alunos que entrarão. Portugal é um dos países em que o acesso ao superior é mais condicionado pelo nível socioeconómico dos estudantes (pior só na Turquia) e, em parte, também tem a ver com isto.
É verdade que, em Portugal, domina uma obsessão pela centralização de competências no Estado, que vive da ilusão dessa ser a única forma de garantir isenção e justiça no acesso aos serviços públicos. Talvez por isso um sistema como o actual se mantenha praticamente consensual. E é também verdade que aquilo que os portugueses mais evitam é ter chatices. Talvez por isso os reitores preferirão que continue tudo como está e seja o Estado a assumir as responsabilidades.
Mas, se de facto o Governo tenciona mexer nas regras de acesso ao superior, mais do que fazer pequenos ajustes, talvez pudesse ir à raiz destes problemas e corrigir estas injustiças. É que esta é mesmo uma boa oportunidade para fazer a diferença. Pela positiva.
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