Quem nos defende?

MARIA JOSÉ NOGUEIRA PINTO

DN20100204

Que o primeiro-ministro não goste de Mário Crespo não tem qualquer importância, nem para o Mário Crespo nem para o País. Grave é aquilo que este episódio nos confirma: a ideia de que se pode governar escamoteando a verdade e encenando a realidade com quanto se consiga silenciar tudo à nossa roda.

O facto de Crespo se ter tornado um alvo a abater pelo Governo funciona, aliás, como uma irónica certificação da sua qualidade profissional. Já o facto de o JN ter suspendido a publicação do seu artigo semanal, interrompendo uma colaboração regular, é um mau sinal, mas que fica com quem o dá. Todos os argumentos evocados não colhem, o colunista é sempre responsável pelo que escreve e assina por baixo, o colunista não dá notícias, relata factos e analisa-os. Mas o que dizer de um primeiro-ministro que, acolitado por dois ministros e acompanhado por um "executivo de televisão", utiliza a hora de almoço do dia do Orçamento do Estado para discutir a remoção de Mário Crespo? E o faz, ao que parece, com a displicência de quem acha que afastar quem incomoda por evidenciar contradições e mostrar um rei que vai nu é algo perfeitamente normal.

A conclusão é evidente: Sócrates provou uma receita perigosa e tem levado a sua avante. Nos últimos quatro anos e meio, um estilo de governação persecutório foi fazendo caminho e, apesar de muitas denúncias e de muita indignação, a capacidade cénica do Governo facilitou as necessárias manobras de diversão. Se bem me recordo, as primeiras vítimas eram funcionários públicos e serviram de aviso à navegação, testando a subserviência da máquina burocrática tomada de assalto por clientelas cuja dependência das benesses governamentais tornou veneradora das iras do poder. Depois, como sempre acontece quando se assumem os excessos como manifestações toleráveis do exercício de um mandato, seguiram-se os meios de comunicação, os jornalistas, os fazedores de opinião. E também neste caso a técnica parece ter funcionado pois, embora em democracia estes visados estivessem por definição fora do alcance da ira governamental, o facto é que parece ter saído vitoriosa essa metástase sombria de redes informais de poder feitas de pressões, chantagens e ameaças por parte dos que têm sempre alguma coisa para dar ou para tirar.

Saber se isto é assim e, sendo-o, se é possível e tolerável é a grande questão. Num país onde as instituições estão debilitadas, onde as elites abdicaram das suas responsabilidades, onde a justiça não funciona, onde se acentuam as desigualdades, onde se reforçam as dependências, onde a soberania nacional está alienada a agências de rating, onde não se consegue reinventar um desígnio nem levantar a auto-estima nacional, onde uma sociedade civil cada vez mais debilitada se torna cada vez menos participativa, temo que sim, que seja possível e tolerado. Caso contrário, como se explica que este PS tenha ganho as eleições?

Conheci Mário Crespo muito antes dos Frente a Frente da SIC, num tempo em que também o consideraram incómodo. Há anos que me sento regularmente àquela mesa para uma conversa a três, num espírito de total liberdade. Tempo suficiente para ter claro aquilo que ele é e o que pretende como jornalista: um espaço de debate, de ventilação e, em momentos mais críticos, um espaço de exercício do poder tribunício dos media. E é precisamente esse poder que hoje foi posto em causa.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António