O buraco negro
Público 20100221 José Pacheco Pereira
Existe uma espécie de buraco negro no centro da vida política portuguesa. Ninguém deseja mais do que eu falar de outra coisa, espairecer, ir para outra, focar o que se pensa e diz num universo mais sólido, mesmo que difícil e duro e complexo, nos seus caminhos. Muitas vezes digo a mim mesmo que é preciso falar dos "verdadeiros problemas do país", o desemprego, a crise, a situação da economia portuguesa, a dívida, mas esta frase mais que certeira na sua vontade de sanidade, ainda que sanidade infeliz, acaba por parecer um escapismo irresponsável e, no fundo, um desvio que erra na identificação dos "verdadeiros problemas" do país. Porque, dê-se-lhe a volta que se lhe der, o país tem no seu centro um buraco negro que reside antes de tudo na própria política, e que acaba por engolir tudo à volta, economia, sociedade, cultura, moral, sanidade nacional, recursos escassos, e que, enquanto lá estiver, vai sempre impedir-nos de sequer poder enunciar os outros problemas mais estruturais como deve ser, isso se quisermos defrontá-los em democracia. Ou seja, estamos presos na conjuntura política actual e sem ultrapassar essa conjuntura não conseguimos actuar sobre a estrutura. O buraco negro é esse e o seu centro maciço é a personagem do primeiro-ministro. Enquanto ele lá estiver, não há sossego nas mentes, moralidade pública, estabilidade e paz civil. Não são os seus adversários que criam esta perturbação, é ele próprio e ele está lá porque os portugueses o escolheram nas urnas e numa democracia só sairá de lá nas urnas.
Eu estou próximo do pessimismo sobre a situação económica e a evolução rápida do país para um abismo evidente, que muitos economistas, a começar pelo mais emblemático no seu pessimismo, Medina Carreira, têm mostrado. Acho há muito tempo que ele tem razão, como têm João Salgueiro, Silva Lopes, João Duque, Daniel Bessa, João César das Neves e muitos outros (e acrescento no plano político, Cavaco Silva e Manuela Ferreira Leite), mas o anúncio da catástrofe não me chega. Ele tem sido muito pedagógico e o verdadeiro pecado de Mário Crespo, que o tornou um problema "a resolver", foi criar um programa de televisão que deu uma voz a esse tom de pessimismo e emergência nacional.
Mas temo que esse tom também tenha um elemento enganador: é que em democracia não há "ditadura das finanças", em democracia não há governos de sábios, nem de técnicos, em democracia e num país soberano, não é saudável um comando exterior imposto, em democracia só há soluções que passam pelo convencimento dos cidadãos da sua bondade e que esse reconhecimento se traduza em votos. Pode ser preciso um abanão forte, para que nos defrontemos com a nossa verdadeira imagem no espelho e não com as ilusões que alimentamos, mas tudo continuará na mesma, ou seja, pior, se o caminho for qualquer entorse na democracia em nome da eficácia económica e financeira. É por isso que uma parte do discurso da catástrofe, com que, insisto, eu me identifico do ponto de vista analítico e mesmo nas soluções drásticas que a podem travar, me parece ser parte do problema, quando é enunciado sem ter em conta o problema democrático, de como resolvê-la em democracia, ou seja, nas urnas. O problema democrático é que só há solução nos votos, e nenhuma solução nos votos escapa a ser uma solução com o PS, o PSD e o CDS, e mesmo com o PCP, ou seja, com os políticos que temos, com os defeitos dos partidos que temos, escolhendo neles os melhores, ou, se quiserem, os menos maus e os que têm consciência dos problemas do país e atacando os outros. Não pode haver demissão cívica, nem nefelibatismo face aos partidos, porque isso ajuda sempre os piores e deixa os melhores sem apoios. Há políticos conscientes da crise e da sua dimensão e são fragilizados na sua capacidade de poderem fazer melhor, exactamente pela mesma rasoira que trata todos por igual, não apoia e ajuda quem genuinamente deseja mudar as coisas e convencer.
O discurso antipolíticos e anti-partidos, por muito justificado que pareça ser, e muitas vezes o é, não ajuda um átomo a resolver os mesmos problemas que esses pessimistas identificam, e, bem pelo contrário, ajuda a agravá-los. Em vez de fazerem escolhas realistas, mesmo que fossem de mal menor, acabam por sugerir que os problemas de condução económica e financeira não são do domínio do político em democracia, mas sim apenas do saber e da vontade. Não chega.
É por isso que a consciência da catástrofe falha, se for apenas isso e se não identificar os bloqueios políticos que a geraram ou que a agravam. De novo é no PS e no PSD, principalmente nestes dois partidos, que existe a única possibilidade de a crise anunciada, e de novo insisto, com lucidez, poder ser resolvida em democracia, ou quando muito mitigada. E é aqui que se tem que ir. O primeiro problema é a actual direcção do PS, o círculo do poder de Sócrates, uma permanente fonte de perturbação da consciência dos portugueses. Como é possível que não sejamos colocados perante o dilema de fazer alguma coisa perante um primeiro-ministro que nos engana, que actua no limite da legalidade, mas com sistemático abuso do poder, que só dá péssimos exemplos e que está a ajudar a perverter um já débil sistema judicial, criando uma situação pastosa em que parece que vale tudo perante uma impunidade generalizada? Sim, o grande bloqueio actual para resolver qualquer problema está num grupo sitiado, mas perigoso e ameaçador, que gera por si só uma enorme dificuldade a qualquer entendimento. Ele não acabará bem, nem a bem.
É por isso que o segundo problema é o do PS, que ganhou as eleições e tem legitimidade para governar, mas que está, pelos seus silêncios e aquiescências, a inquinar o país e a bloquear o clima de apaziguamento que tem que preceder qualquer defrontar da crise. Não é possível pedir aos portugueses nenhum sacrifício, enquanto o primeiro-ministro for o homem que os enganou e engana sobre o país em que vivem e os seus problemas. Em tempos de depressão, a autoridade moral é a única que ajuda a manter a paz social e uma consciência de um esforço colectivo. Com José Sócrates, não existe essa autoridade moral, sobra só a autoridade e cada vez mais o seu abuso. O PS sabe hoje muito bem disto, mas o apego ao poder está a torná-lo um obstáculo ao esforço nacional para defrontar a crise iminente.
E o terceiro problema é o PSD, onde o dilema é ficar-se mais parecido com o PS, ou sentir-se como vital a emergência que Portugal atravessa e a necessidade de uma alternativa efectiva e a curto prazo. A preparação do PSD para um cenário eleitoral para que vá sem receios é um dos factores que mais permitem desbloquear a crise que vivemos e tapar o buraco negro não sei bem com que massa, mas sei que nela tem que haver votos, os votos dos portugueses que estão fartos de saberem indignidades todos os dias e de se sentirem impotentes face a elas e que querem mudar. E que já são muitos. Historiador
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