"Lei Barreto é o gesto político de que mais me orgulho"

NEGÓCIOS | negocios@negocios.pt | 15 Fevereiro 2010, 11:55

António Barreto fez parte do I Governo Constitucional. Foi ministro da Agricultura entre 76 e 78. Dele é a autoria da Lei Barreto, que pôs fim às ocupações da reforma agrária. E só lamenta haver indemnizações por pagar. 

Passados 35 anos, há ainda expropriados que não receberam as indemnizações. Não deveria o Estado ter agilizado o processo? 

Considero que isso é inadmissível. Por mais que se diga o contrário, em Portugal, o Estado não é uma "pessoa de bem". Não respeita o Direito que cria, mesmo se exige que os outros o respeitem. 
Na altura da Lei Barreto, as terras ocupadas estavam a produzir mais do que antes da reforma agrária? 

Nuns casos sim, noutros não. Em 1974 e princípios de 1975, por causa das ameaças existentes, alguns lavradores reduziram as sementeiras e os trabalhos. Mas esse não foi o factor determinante. Os ocupantes, em geral, quiseram demonstrar a sua "superioridade", por isso semearam o mais possível, mesmo com riscos de não fazer os pousios adequados, o que causou problemas. De qualquer maneira, a ideia de que no Alentejo havia milhares e milhares de hectares não cultivados era um mito ou uma mentira. Havia alguns casos, mas nada que se pareça com o que se dizia. E ainda diz... É preciso ter em conta o facto de o Alentejo ter condições muito especiais e ser terra de sequeiro. O montado é seguramente a fórmula ideal, tanto económica como ecologicamente, para cultivar aquelas terras. Os ocupantes de 1975 fizeram, nalguns casos, tantos disparates quanto a Campanha do Trigo dos anos vinte e trinta dos idos de Salazar... 

Quem mandava nas terras à altura da Lei Barreto? 

Em teoria, no Verão de 1975, o Estado. Na prática, os ocupantes, as Unidades Colectivas de Produção (UCP) e o PCP. Era uma espécie de território conquistado. Chegou a haver casos, não poucos, em que brigadas civis vigiavam a circulação automóvel, identificavam passantes, etc. 

Que efeitos teve a reforma agrária na agricultura portuguesa? E que efeitos teve o fim do regime da reforma agrária? 

Efeitos importantes e duráveis da reforma agrária? Nenhuns. A não ser que dividiu a população, abriu feridas e criou conflitos. Por outro lado, durante dois anos, garantiu salários (não necessariamente emprego ou trabalho) a uns milhares de trabalhadores. Alguns potenciais empresários foram-se embora. Muitos trabalhadores também. Os factores de abandono dos campos retomaram, o que aliás aconteceria de qualquer maneira, ainda por cima com a Política Agrícola Comum europeia. 

O lema da reforma agrária foi "a terra a quem a trabalha". Sentiu que a Lei Barreto era a retirada das terras a quem a trabalhava? 

Por vezes pensei nisso. Toda a minha juventude tinha sonhado com a reforma agrária, isto é, a distribuição de terras das grandes propriedades por agricultores e camponeses sem terra. De repente, dou comigo a devolver a terra aos antigos proprietários, que tinham sido ilegalmente esbulhados. Sem que sequer se tenha distinguido entre bons e maus lavradores, entre empresários e absenteístas! Os erros e os princípios políticos da primeira reforma agrária, de carácter colectivista e comunista, destruíram qualquer hipótese de levar a cabo uma reforma agrária verdadeira. 

A reforma agrária cumpriu o objectivo inicial? 

O objectivo inicial dos comunistas (nacionalizar, expropriar, destruir a propriedade privada, colectivizar e criar herdades de Estado): Não! Perderam. O objectivo das reformas agrárias (distribuir terras por pequenos e médios agricultores e camponeses): Também não! 

Por que houve necessidade da Lei Barreto? 

A maior parte do eleitorado em Portugal, mais de 85% da população, não queria aquilo. O Alentejo ocupado era território que escapava à Administração Pública e à democracia. O PCP usava o Alentejo como um desafio à autoridade do Estado democrático. Tudo quanto tinha sido feito (ocupações, não devoluções das reservas, aquisição de máquinas e gado, criação das UCP, etc.) tinha-o sido à margem da lei ou mesmo contra a lei. Não havia razão para permitir que um terço do país estivesse entregue a um partido com as suas próprias leis e a sua soberania. 

Concordou na origem com a reforma agrária? 

Com a que foi feita em 1975, nunca! Nem um dia! Tudo foi feito ilegalmente e com um destino político. Muita gente era contra, inclusivamente, por exemplo, o velho Professor Henrique de Barros, antigo defensor das ideias de reforma agrária e que nunca se reconheceu naquilo. 

Havia razões sociais e económicas a justificar a reforma agrária? 

Poderia haver algumas. Havia muitas centenas de pequenos agricultores sem terra, de rendeiros, de seareiros ou mesmo de trabalhadores que gostariam de trabalhar as suas terras. Mereciam uma oportunidade. Com investimentos de infra-estrutura, como os regadios, por exemplo, o Alentejo poderia ser hoje mais verde, mais diversificado, mais produtivo. 

Que papel foi deixado às UCP? Tiveram algum papel na altura da Lei Barreto? Porque faliram praticamente todas? 

As UCP, sem o Estado, sem o Banco de Portugal a garantir o crédito e os salários, sem o PCP a organizá-las, sem os Sindicatos aliados às Forças Armadas, com a necessidade de respeitar as regras elementares de economia e das leis do Estado de Direito, sem uma economia nacionalizada que lhes cedia os adubos e as sementes, sem os votos crescentes do PCP, não serviam nem servem para nada! 

Quais foram as maiores dificuldades na reversão das terras? 

No meu tempo de governo, foram devolvidas poucas terras e poucas herdades. Era o início. Foi preciso muita força. Foi preciso intimidar, a fim de evitar uma guerra civil. Foi preciso usar alguma violência controlada, pois era indispensável não causar feridos e mortos o que, no meu tempo, se conseguiu. Dificuldades? A resistência do PCP e dos sindicatos. A imprensa de esquerdas, incluindo alguns socialistas totalmente enganados de partido ou míopes. 

Alguns dos donos que perderam terras eram de nacionalidade estrangeira. Existiram pressões diplomáticas por parte de governantes estrangeiros, nomeadamente Inglaterra, para a restituição? 

Todas as embaixadas estrangeiras se manifestaram. Mas muito cordialmente. Estavam, de qualquer maneira, mais preocupadas com a indústria, a banca e as empresas urbanas. 

Sentiu que o processo de reversão foi bem sucedido? Porquê? 

Toda a reforma agrária, feita daquela maneira, foi um disparate e uma inutilidade. Perdeu-se tempo, paz, dinheiro, recursos, inteligência, empresários e oportunidades. Hoje não temos um Alentejo produtivo. A política europeia deu cabo do que sobrava. A falta de visão, de grandeza e de coragem fez com que não se construíssem regadios, não se tivesse investido mais em infra-estruturas, não se tivesse feito muita formação de agricultores... 

O que sentia quando via palavras de ordem como "Abaixo a Lei Barreto!" 

Sentia reconforto. O combate era, a meu ver, tão duro e tão legítimo que, se não houvesse uma forte reacção, era porque estava errado! 
Terá chegado a dizer frases como "O Alentejo não será a Sibéria de Portugal". Além da questão da propriedade da terra, havia também o risco de dividir o país em dois regimes políticos? 

Os Sindicatos e as UCP chegaram a mover-me processos em tribunal (260 ao todo!) por ter dito essa frase! Na verdade, era isso que estava em causa. Não apenas uma questão de política agrícola, não apenas um problema de modelos de unidades produtivas, mas sim a questão essencial do Estado, da democracia, da liberdade e da dignidade humana. 

Acha que Portugal já ultrapassou os "traumas" da reforma agrária, ou ainda há feridas por sarar? 

Há cicatrizes. Mas com o actual estado de coisas, com a crise económica e financeira, com a crise das finanças do Estado e com o desaparecimento da agricultura, são coisas do passado... 
Lamenta ficar para a história como o autor da Lei Barreto? 

É o gesto político de que mais me orgulho e que mais me honra.

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