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Público, 2010-02-11 Helena Matos

Alguns dos nossos mais importantes responsáveis pela Justiça falam obsessivamente da comunicação social


Algumas das mais importantes figuras do Estado confundiram os portugueses com os telespectadores, deslocalizaram do sentido do dever para os jogos do dizer e acabaram como era absolutamente previsível a reboque da comunicação social e a queixar-se do que sai nos jornais. Talvez um dia percebam que há um país para lá dos microfones e que é com esse país que têm um compromisso de lealdade. Mas por agora estão reféns dos alinhamentos noticiosos.

I) O senhor presidente do Supremo Tribunal de Justiça vai às televisões explicar o que não explicou com clareza em devido e institucional lugar aos portugueses. Ao senhor procurador-geral da República também pareceu adequado escolher o momento em que saiu duma gala televisiva para produzir declarações sobre assuntos a propósito dos quais tem entendido que não devia dizer mais nada. As principais figuras da Justiça passaram a ter como pública preocupação não o que fizeram e decidiram, mas sim que na primeira página de um jornal se diga o que fizeram e decidiram nos casos mediáticos.

Perorando todos os dias sobre a comunicação social, alguns dos nossos mais importantes responsáveis pela Justiça não só falam obsessivamente dela, como parecem identificar a avaliação ética do desempenho dos seus cargos com aquilo que deles se diz nessa mesma comunicação social que tanto os irrita, mas da qual dependem cada vez mais. Sintomaticamente não explicam o que acontece na Justiça. E não estou só a pensar no caso Face Oculta. Estou a pensar nas alterações ao Código de Processo Penal e também no processo da Casa Pia, em que após anos e anos em tribunal fomos informados que está agora a ser pedida a audição de dezenas de testemunhas. E estou sobretudo a pensar em inúmeros processos sem nome dos quais os portugueses não percebem nem os resultados nem os procedimentos.

II) Nesta concepção do país como um estúdio - logo, em que apenas conta o que se vê e diz - temos ainda a tentativa de reduzir as revelações do jornal Sol a uma espécie de tentação que o primeiro-ministro, qual editor de imagem interventivo, terá para interferir na comunicação social.

Como é óbvio, o primeiro-ministro tem toda a legitimidade para detestar e odiar jornalistas, noticiários e comentadores. Aliás, todos os primeiros-ministros odiaram jornalistas, noticiários e comentadores e frequentemente com muita razão. É certo que eram geralmente mais discretos do que José Sócrates nas suas apreciações, embora isso não tenha qualquer relevância. Mas como também é óbvio não estamos perante uma questão de gosto, estilo ou de falta de senso. Estamos sim perante uma questão de poder que nada tem a ver com as pretéritas manifestações de desagrado ou as habituais pressões.

Acontece que o Estado português não cresceu só na despesa. Cresceu no poder, sobretudo no poder económico: empresas públicas, fundações, institutos, parcerias e pareceres, a que se junta a CGD, aliados a uma mais eficaz máquina fiscal e a um universo infindável de licenciamentos e certificações estatais necessários para toda e qualquer actividade, fizeram de José Sócrates um primeiro-ministro que não se limita a pressionar como os seus antecessores fizeram ou quiseram fazer. Agora o Estado compra o que tiver de comprar. Ou o que for conveniente para o poder político que se compre. As conversas que o Sol transcreve são o espelho desse Estado em que quem ocupa o poder político vê o país como coisa sua. E como os primeiros-ministros passam e os países ficam é conveniente não esquecer que esta máquina estatal tentacular vai ficar aí ao dispor de quem suceder a José Sócrates. Ou se repensa o peso do Estado na nossa vida, ou conversas como aquelas vão sempre poder acontecer.

III) Quando se aceitou que determinadas circunstâncias pessoais de José Sócrates não eram incompatíveis com o cargo que ocupava, simplesmente porque essas circunstâncias não tinham sido consideradas como matéria pela Justiça, criou-se um padrão em que tudo aquilo que o primeiro-ministro fizesse ou tivesse feito era legítimo, desde que não fosse crime. Desde esse momento era inevitável acabarmos assim: os jornalistas fazem o papel da Justiça; o primeiro-ministro transformado no principal problema do seu Governo pronuncia-se sobre o que deve ser notícia e a Justiça tenta justificar-se do que fez e não fez. Tudo pela prosaica razão de que os políticos não fizeram em devido tempo o que tinham a fazer: assumir que entre aquilo que a Justiça considera crime e o que a sociedade vê como eticamente aceitável vai uma nítida linha que político algum e muito menos um primeiro-ministro pode pisar.

Ensaísta

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