Ecologia do pântano
por JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN20100102
Para explicar a actual situação, a tese dominante na população portuguesa é que ela se deve à má qualidade da classe política. É por nos faltar um líder à altura, dizem muitos, que estamos assim. Essa tese é evidentemente falsa. Pode até dizer-se que ela afirma precisamente o inverso da realidade. Não é por ausência de bons políticos que estamos em crise. É por estarmos em crise que faltam bons políticos.
O Eng. Guterres fez uma das mais sagazes análises da história nacional quando a 16 de Dezembro de 2001 disse que se demitia para "evitar que o país" caísse "num pântano político". Foi para o pântano que o seu mandato nos conduziu e é no pântano que temos estado desde então. Ora num atoleiro nunca se encontram leões. Quem quer ver animais nobres tem de ir a outros lados. No charco só existe o tipo de batráquios que nos tem governado estes anos.
Existem hoje muitos excelentes políticos em Portugal. Pessoas capazes, conhecedoras da situação, com poder de análise, acção e liderança. Mas, precisamente por serem boas, não entram em acção nas actuais condições. Nos graves momentos da nossa história, nunca faltaram pessoas de qualidade. O que por vezes falta é oportunidade para eles actuarem. E não os devemos acusar de cobardia ou falta de patriotismo. A sua decisão é razoável. Se um leão entrar num pântano, não muda a situação e só se suja a si mesmo. A culpa não é do leão. É do pântano.
Temos, aliás, prova disso. Referindo apenas os dois factos mais marcantes e as pessoas neles mais simbólicas destas décadas, vemos que na implantação da democracia após 1974 fomos claramente dirigidos por Mário Soares e na adesão à Europa depois de 1986 por Cavaco Silva. Goste-se ou não, temos de admitir que foram pessoas à altura das responsabilidades e conduziram com sucesso o País em momentos decisivos.
Mas nós hoje não temos um problema. Somos o problema. Por isso não andamos em busca de uma solução. A resposta para as nossas dificuldades é evidente há anos. O que tem faltado não é o caminho, mas vontade para o percorrer. Se aparecer um líder que nos indique o rumo, ele será geralmente desprezado. Aliás, foi isso mesmo que aconteceu.
Houve uma pessoa que, depois da podridão em que nos introduziu o delírio dos anos Guterres, conseguiu por momentos estancar e inverter o descalabro. A ministra das Finanças Manuela Ferreira Leite, goste-se ou não dela, presidiu aos únicos anos dos últimos 15 em que o défice da balança externa se reduziu e o endividamento nacional foi amortecido. Mas, quando ela se atreveu a apresentar-se como candidata a líder, foi recebida exactamente com a mesma atitude que o leão enfrentaria se descesse ao pântano.
Nós não precisamos de bons políticos. Precisamos de vontade para tomar os remédios amargos que eles nos indicariam. Infelizmente temos preferido a embriaguez dos eflúvios pantanosos. Enquanto apodrecermos na lama, veremos a zoologia que escolhemos.
Quais são os tais remédios amargos? Para o caso de ainda haver alguém com dúvidas, é fácil descrevê-los. O pântano guterrista é apenas o país em que sempre habitámos, mas agora alagado em dívida. E o caminho para fora desse atoleiro é bem conhecido. Basta apertar o cinto e adquirir hábitos de consumo mais adequados às nossas posses. Não é preciso apertar muito, porque já somos um país rico. Mas temos de cortar. A crise internacional força grande parte dos nossos cidadãos a isso. Todos os que trabalham em empresas concorrenciais sofrem na pele essa necessidade, que é gritante nos muitos que caem no desemprego. O sol seca o pântano.
Essa é a parte fácil. O obstáculo está nos muitos que vivem de fundos públicos. Políticos, mas também pensionistas, subsidiados, funcionários, professores, médicos, polícias, militares, construtoras, concessionárias e tantos outros, pagos por impostos, não só não perderam com a crise mas até ganharam na deflação. Essa é a base do problema orçamental, face visível do pântano. Habituados à vida anfíbia, esses até sonham com leões, mas recusam abandonar o paul.
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