Uma década para recordar (ou, se possível, esquecer)

DN20100103 ALBERTO GONÇALVES

2001

Fevereiro

Após os 59 mortos do acidente de Entre-os-Rios, o ministro do Equipamento Social explicou que a culpa não podia morrer solteira e demitiu-se do cargo. Passados uns anos, regressará como administrador da Mota-Engil, empresa que também se dedica à construção de pontes. Não seria mais estranho se Manuel Pinho tivesse saído do Governo para presidir aos Aficionados da Moita. O que para o dr. Jorge Coelho será um processo de autoflagelação é, para os automobilistas, um perigo iminente.

Setembro

Não vale a pena lembrar o que aconteceu aqui. Vale perceber que a queda das torres na "baixa" de Manhattan teve um papel clarificador na separação entre os que se horrorizaram face ao atentado e os que o festejaram com maior ou menor discrição. Em público, os festejos assumiram a forma da palavrinha "mas": o 11/9 foi mau, mas justificado/merecido/oportuno/compreensível/bom.

2002

Setembro

O País percebeu com espanto que Casa Pia era, afinal, uma designação irónica para o convívio de rapazinhos com rapazinhos maiores. O mais espantoso é que alguns dos maiores alegadamente envolvidos formavam um pequeno who's who da política e, passe a redundância, do espectáculo. Entre imensa desinformação e proverbial escândalo, na opinião pública o caso durou o tempo que estas coisas costumam durar e sossegou depois de uns meses. Nos tribunais, o caso durou o tempo que estas coisas costumam durar e, sete anos decorridos, o julgamento dos suspeitos que sobraram ainda prossegue.

2003

Março

Começou a invasão americana ao Iraque, que boa parte da "opinião pública internacional" achou intolerável por comparação à invasão do Afeganistão. Ano e meio antes, a mesma "opinião pública internacional" achara intolerável a guerra afegã. Depois viria Obama e, sob Obama, ambos os conflitos perderam interesse.

2004

Junho

Portugal recebeu o Europeu de futebol, um sucesso desportivo. Terminado o desporto, o que ficou do Euro? As dívidas contraídas pelas autarquias e dez campos da bola que, na opinião do seu principal impulsionador, o então ministro José Sócrates, foram um "bem necessário". "Necessário" é pouco: os estádios são sagrados. Deve ser por isso que ninguém lhes toca, a não ser, talvez, as máquinas de demolição, ao que consta o futuro próximo de alguns.

Dezembro

A transladação de Durão Barroso para Bruxelas levara Jorge Sampaio a inexplicavelmente nomear um governo liderado por Santana Lopes. Igualmente inexplicável, a não ser pela estratégia "partidária" que só os cínicos podem imputar ao então presidente da República, foi a decisão de dissolver o parlamento passados cinco meses, por acaso mesmo a tempo da reconstituição do PS após o escândalo da Casa Pia. Entretanto Santana, que lamentou a oportunidade da segunda decisão, arrependeu-se de ter aceitado a primeira. Haja alguém.

2005

Fevereiro

Depois de beneficiar dos efeitos da Casa Pia no PS, José Sócrates beneficiou dos efeitos de Santana Lopes no Governo e chegou a primeiro-ministro. Oportunismo? Talento? Sorte? Modesto, o eng. Sócrates, que tomou a palavra "eleito" na acepção bíblica, prefere atribuir a sua ascensão aos desígnios da Providência. Como bom iluminado, encara as críticas a título de inveja. Quanto às críticas, dirigem-se mais às trapalhadas éticas em que o homem se envolve do que a um facto simples: a sua portentosa inépcia governativa. Se Guterres nos legara o "pântano", o eng. Sócrates suscita-nos saudades do "pântano", no qual, residuais ou postiços que fossem, havia o dinheiro, o trabalho, a seriedade, a confiança e a esperança que já não há.

Outubro

Os subúrbios de Paris lançaram-se numa folia incendiária. As reportagens televisivas dos eventos motivavam angústia pela brutalidade das imagens e gargalhadas pelo malabarismo dos jornalistas, que se davam a incomensuráveis esforços para evitar nomear o que unia a quase totalidade dos pirómanos: o Islão. Em vez disso, os pirómanos eram apresentados como jovens em protesto contra a falta de emprego e de "apoios", explicação dificilmente aplicável a sujeitos que fogem do trabalho e vivem de subsídios estatais. Certos exotismos franceses, entre eles a permissividade da justiça, não impediram que o quadro geral, uma mistura do "nojo de si" ocidental e da fúria e demografia muçulmanas, servisse de exemplo e amostra daquilo que a Europa pode aguardar num futuro mais próximo do que se pensa. Se é que a Europa pensa.

2006

Julho

Para inúmeros ocidentais (nem falo nos restantes), a segunda guerra do Líbano foi o pretexto ideal para regressar a um dos passatempos da década: as manifestações contra o "estado judaico" (sic). Ajudados pela cobertura televisiva, que cobriu o conflito na perspectiva árabe e abraçou todas as manipulações da praxe, os protestos públicos tiveram o cuidado de negar o anti-semitismo e assumir o anti-sionismo, uma diferença curiosa tendo em conta que, na prática, ambos os sentimentos implicam a implosão de Israel, de preferência com os respectivos habitantes lá dentro.

2007

Fevereiro

Após a vitória no "Sim" no referendo à despenalização do aborto, os simpatizantes da causa comemoraram a "entrada de Portugal no século XXI". A vasta maioria da população, que nem votou, comemorou o fim da gritaria que animara a campanha de ambos os lados. Infelizmente, fê-lo demasiado cedo: num ápice, os "activistas" do costume descobriram que, afinal, Portugal só entraria no século XXI depois de autorizar o casamento entre pares do mesmo sexo e a adopção pelos mesmos. Em breve, perceberão que não haverá século XXI sem eutanásia, clonagem de embriões, drogas livres, abolição do catolicismo e quotas para anões hermafroditas. Se eu pudesse, aprovava tudo e já. Mas como é provável que alguns irresponsáveis se oponham a tais anseios, o século XX ameaça prolongar-se por cá até 2076, mais coisa menos coisa. E sempre aos berros.

Maio

Desapareceu a filha de um casal inglês que passava férias em Lagos. A posteridade consagraria a criança como a "pequena Maddie" e os pais com epítetos que variaram de acordo com a percepção popular do caso, mais influenciada pelos palpites da investigação do que pelas respectivas conclusões, aliás zero. O alcance internacional da história, que atraiu as boas consciências e as fatais "celebridades", fez mais pela popularidade do Algarve do que quinhentas campanhas turísticas, embora não necessariamente no sentido desejado. A Judiciária, outrora "a melhor polícia do mundo", também ganhou fama internacional. E também esta foi dúbia.

2008

Setembro

No crash de 1929, as massas em pânico correram a vender acções. No crash de 2008, correu-se a vender previsões catastróficas na imprensa e televisão. De acordo com o consenso instantaneamente gerado, estava-se perante a maior crise dos últimos 60, 100 ou 27000 anos. Pior: a crise evidenciava o fracasso do capitalismo "selvagem" (?) e exigia "novos paradigmas" económicos. No caso, o "novo paradigma" consistia em engordar o Estado e espatifar dinheiros públicos em extravagâncias, uma técnica pouco eficaz e depressa demolida pela realidade no mundo civilizado. No mundo menos civilizado, prestidigitadores ainda vendem essa ilusão em certos países: aqueles cuja crise interna ameaça prolongar-se mais que a do capitalismo, entretanto regressado como sempre. E domesticado como sempre.

Novembro

Em Barack Obama, a América descobriu um presidente. Com escassas excepções, o resto do Ocidente descobriu o redentor do cosmos, o Messias ou, para os mais moderados, um líder espiritual. Está por provar até que ponto um certo paternalismo "racial" influencia a devoção. Mas está provado que a devoção impede muitos de notar uma evidência: a de que, em matéria de política externa, Obama é, na melhor das hipóteses, uma continuação de George W. Bush e, na pior, um regresso a Jimmy Carter. Ambas as possibilidades não entusiasmam. Ou não deviam entusiasmar.

2009

Dezembro

Na retórica de cientistas, políticos, jornalistas e curiosos diversos, o "aquecimento global" marcou uma década em que, de acordo com dados reais, a Terra parece ter arrefecido. A entrega do Nobel da Paz a Al Gore, a pretexto de um "documentário" cravejado de meias verdades e delírios inteiros, consagrou a histeria apocalíptica assente numa mera hipótese estatística e numa comprovada obsessão: a de que a prosperidade ocidental e não só é insuportável. Já no fim de 2009, os e-mails roubados a alguns dos mais eminentes climatologistas revelaram, na medida em que os media permitiram revelar, a fraude que se preparava para devolver a humanidade ao Paleolítico em nome de um futuro melhor. Também por isso a Cimeira de Copenhaga foi um abençoado fracasso.

Figura

Ben Laden

Poucos o conheceram e quase ninguém sabe se está vivo ou morto. De qualquer modo, Ben Laden é, mesmo que apenas simbolicamente, a figura tutelar de um período repleto de receios imaginários e um perigo real. Ao contrário das oscilações de Wall Street, das variações climáticas ou de gripes sortidas, uma visão dominante no mundo muçulmano abjura de facto a "licenciosidade" ocidental, que não compreende ou aprecia. E uma parte pequena mas significativa de muçulmanos dispõem-se a vincar a diferença de opiniões pelo sangue, de que a década, em Nova Iorque, Madrid, Londres, Bali, Istambul e um longo etc., foi testemunha. A década que agora começa também o será, cabendo ao Ocidente optar entre a defesa da "licenciosidade" e a submissão, que é Islão em árabe.

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