Tirem-me daqui

Público, 20100109 José Pacheco Pereira

Ontem, o Parlamento tornou-se um ecossistema de todas as bizarrias da vida política portuguesa


Ele há dias em que de facto apetece dizer "tirem-me daqui". Quando o "daqui" é o Parlamento, um lugar a que pertenço, onde sou parte com gosto e interesse, um lugar que, contrariamente à opinião corrente, prezo exactamente por ser uma emanação do que de mais fundo existe na vida política democrática: a diferença de opiniões, os "partidos" em que nos dividimos, a representação imperfeita que seja, da turbulência que é a vida política em liberdade. É exactamente a imperfeição do Parlamento, que emana do seu carácter democrático, que sempre me interessou, porque só brilharia de perfeições se fosse totalitário ou apenas demagógico. A Assembleia Nacional salazarista era isso mesmo, tudo tão educado, tudo tão respeitador, tudo tão "vossas excelências" e "excelentíssimo senhor Presidente do Conselho", tudo sábios e doutores e comendadores e digníssimos representantes da nação, e nada de democracia. De todas as instituições políticas, mais nas suas fraquezas que nas suas forças, o Parlamento é o que é o Portugal político, não o Portugal dos políticos, mas o Portugal político que existe, tão próximo do comum dos cidadãos que estes o maltratam com a proximidade de uma coisa sua, de uma zanga de vizinhos, de uma querela conjugal, de uma valente discussão de café. Este aspecto igualitário que faz com o que o homem comum olhe de cima para o Parlamento torna muito árdua a função parlamentar, mas é, no fundo, normal. Há lá virtudes, mas o homem comum prefere vê-lo como o retrato dos seus vícios, e nas suas críticas demagógicas ao Parlamento presta-lhe a homenagem de o sentir mais seu do que alguma vez o admitirá.

Mas há dias em que o Parlamento falha completamente, quando se torna uma pequena côterie de iluminados que querem contra tudo e contra todos, com uma superficialidade gritante, aceitando uma retórica tão inflamada como vazia, decidindo quase a brincar coisas cujas consequências não são pensadas a sério, em grande parte por modismo e por subserviência ao politicamente correcto. Ontem, o Parlamento tornou-se um ecossistema de todas as bizarrias da vida política portuguesa, um lugar puramente superstrutural, fora do país, sem laços com qualquer realidade, vivendo de uma ficção entre a festa radical chic e os movimentos da extrema-esquerda tardia, que descobriu com o atraso de trinta anos as "causas fracturantes". Ontem, o Parlamento afastou-se de qualquer fundação democrática real e tornou-se apenas o espelho formal de "causas" ultraminoritárias, próprias de uma cultura alternativa, minoritária mesmo entre os homossexuais e lésbicas, a maioria dos quais ainda estão dentro do "armário", num contexto social e etário muito diferente dos jovens que comemoravam nas escadas da Assembleia o seu dia de glória mediática. Essa maioria invisível, essa sim é que vive mal e infeliz, e estes folclores não a ajudam porque contribuem para reforçar a homofobia e não a combatê-la.

O que mais me assusta é a irresponsabilidade de toda esta "festa". Os jornais e as televisões ardem de falsa indignação quando um deputado chama palhaço a outro ou o manda a qualquer lugar feio, mas não é isso que ajuda a estragar o Parlamento: é o momento em que este, sem sequer parar para pensar, se desvia do país para navegar causas absurdas com as quais gasta as melhores das suas palavras. Quando ouvia interiormente o "tirem-me daqui", foi quando assistia aos discursos grandiloquentes sobre o dia da "decência", o momento de "grande dignidade", a "reparação dos direitos ofendidos", a dádiva da "maior felicidade", com hipérbole sobre hipérbole, desde o primeiro-ministro aos Verdes, do Bloco de Esquerda ao discurso de puro insulto inflamado de um deputado da JS.

No meio disto tudo, o discurso de Vale de Almeida parecia um exemplo de moderação, apesar do seu tom de oração evangélica aos "irmãos e irmãs", que fazia chorar as pedras da calçada. E mesmo Assis, que é bem melhor do que a sua bancada, colocava entre parêntesis o seu pessimismo antropológico para saudar o "progresso" daquele dia, em que o Sol rasgava as trevas ignaras da Reacção. Parecia o Congresso a aprovar a Declaração da Independência. Só o PCP, embora votando junto com a esquerda, mantinha uma reserva e discrição envergonhada, eles que ainda mantêm o fio da corrente ligado à terra e sabem bem que tudo aquilo é mais folclore do que qualquer emancipação de um direito. E era tudo, no fundo, tão ridículo, que eu me perguntava: será que "eles" não dão por ela? Se calhar não.

As principais vítimas de tudo isto serão aqueles que amam ou desejam alguém do mesmo sexo, homossexuais e lébicas, mais os primeiros do que as segundas, que sitiados por uma sociedade que efactivamente os hostiliza e maltrata, serão vítimas de ver o seu amor ou o seu desejo ainda mais marginalizado pela exibição mais ou menos folclórica e "fracturante" de meia dúzia de intelectuais, pequenos e médios criadores e artistas, gente do mundo da comunicação social, das indústrias culturais, da moda, urbana, jovem, bem arranjada e chique, que em conjunto com alguns políticos, deram origem a uma pseudocausa, de um pseudodireito, o do casamento entre pessoas do mesmo sexo. O Partido Socialista frágil nas suas convicções e sem uma ideia consistente para o país, que cada vez menos conhece, abriu a brecha por onde o Bloco de Esquerda entrou. E não o fez só agora, já com a legislação sobre o divórcio se andam a meter nas andanças da engenharia social "fracturante", gerando uma sociedade mais fragilizada e menos justa para os fracos, como as mulheres divorciadas por carta e os homossexuais que não pertencem à beautiful people.

A ilusão de que o acesso ao casamento quebra uma barreira simbólica que ajuda a terminar com a homofobia efectivamente existente, o argumento mais hábil de Vale de Almeida, repousa numa ambiguidade e numa hipocrisia. Porque Vale de Almeida sabe perfeitamente que ele e muitos outros a última coisa que pretendem é casar-se, ou sequer imaginam no casamento qualquer virtude especial. Eles sabem bem que o casamento é algo dos "outros", não por causa da lei que os exclui, mas porque o que vem virtualmente no pacote do casamento, a instituição familiar convencional, os "deveres conjugais", não correspondem ao mesmo mundo cultural e emocional do seu entendimento da "causa" dos homossexuais e lésbicas. Para eles o que conta é a "causa", não o mérito da instituição a cujas portas pretendem aceder e por isso a questão é outra, bem longe da luta por um direito, é um ataque a uma determinada forma de viver em sociedade, que abominam e desprezam e tem pouco a ver com a sua cultura e a sua mundovisão. Sabem que ao romper na lei a relação do casamento com a família nuclear, que implica possibilidade real da procriação, erodem para outros um valor que não desejam.

É por isso que se trata de uma "luta", não por direitos, mas contra uma determinada forma de sociedade. E é também por isso que por todo o debate mostrou uma enorme intolerância num só sentido. "Fanáticos", "intolerantes", "retrógrados", "reaccionários", "aberrantes", foram palavras comuns, ecoando o que era o tom de muita comunicação social que tomou a causa como sua. "Tacanhos" eram todos os que se opunham ao casamento de pessoas do mesmo sexo. Não é "luta de classes", mas é kulturkampf.

O que irá acontecer nos próximos dias é previsível. Os primeiros casamentos de pessoas do mesmo sexo serão eventos "mediáticos". Vão lá estar todas as televisões. Haverá muita festa e depois, pouco a pouco, haverá cada vez menos casamentos e cada vez menos novidade. Apenas meia dúzia de pessoas se casará, o que mostrará como era vazia a força do direito ofendido. Mas será o folclore que "passará", uma espécie de travestismo perverso e o seu efeito será aumentar a intolerância homofóbica. Historiador

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