Imagens e imaginação

por Paulo Tunhas, i-online 20 de Janeiro de 2010

O problema das televisões, em casos como a catástrofe do Haiti, é que as imagens, perversamente, limitam a imaginação do sofrimento alheio


Às vezes a televisão mostra o seu lado perverso. Ao ponto de convir, de facto, evitá-la. Agora foi com o terramoto do Haiti. Se calhar a perversão aqui era fatal, mas isso não a torna menos perversão.

Ver repetidamente pessoas que sofrem, aqui ou ali inquiridas por jornalistas sobre a natureza dos seus sofrimentos, suscita, estranhamente, uma espécie de indiferença à dor alheia, acompanhada, ou não, da respectiva má consciência. Sobretudo quando, tratando-se de uma catástrofe natural, a coisa não é susceptível, num plano imediato, de muita elaboração. Aconteceu. É um puro facto. É assim. Note-se que, se se tratasse de uma violência exercida por seres humanos sobre outros seres humanos, a reacção seria, em todo o caso, diferente. Seria necessário tomar posição. Aqui não. Culpar o vago Estado haitiano pela miserável situação da vida por aquelas bandas, que levou à extravagante escala da mortandade, ou então culpar ex- -potências coloniais, ou, por uma ou outra razão (encontra-se sempre uma), os Estados Unidos, é, no contexto, ligeiramente obsceno. Aconteceu. É um puro facto. É assim.

A imprensa escrita, pela sua própria natureza, não corre o risco da televisão. Não dá a ver. Melhor ou pior, informa. E, de um modo só aparentemente paradoxal, a simples informação é capaz de provocar emoções humanas mais poderosas, e de nos fazer pensar mais, do que a repetição em massa das imagens. Por isso passei para os jornais. Ainda gostava de conseguir continuar a experimentar a comoção da piedade quando vejo alguém ser retirado, com um sopro de vida, dos escombros. E tenho a certeza que as muitas pessoas que partiram voluntariamente para o Haiti para tentar salvar vidas não foram por causa das imagens: foram por causa da informação.

O problema da televisão não é, como se repete ritualmente nestas circunstâncias, o "voyeurismo". Supor prazer (mesmo disfarçadíssimo) na produção, ou na contemplação, daquelas imagens parece declaradamente excessivo. O verdadeiro problema, a origem da perversão, reside em o excesso de imagens inibir precisamente a imaginação. Ora acontece que o sentimento de continuidade que temos em relação aos outros, e que nos permite a simpatia e a comoção, vem da imaginação. As imagens, repetidas vezes sem conta, alheiam-nos dos outros, fazem- -nos objectos. O próprio choro da criança se transforma num objecto.

Não sei, repito, se as televisões podiam fazer diferentemente. São feitas para mostrar a exterioridade, para a impor. E a exterioridade bruta não revela o sofrimento. Mostra uma aparência que, finalmente, nos distrai da coisa em si.

Professor do Departamento de
Filosofia da Universidade do Porto

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