Os tempos de Sócrates estão a acabar mas a herança é pesada

Público, 20100116 José Pacheco Pereira

Pensava ele que tinha tempo para inverter a situação fazendo um braço-de-ferro. Mas surgiu um novo elemento: a crise grega


Os tempos de Sócrates estão a acabar, esgotados, encurralados, perdidos na nuvem de arrogância do "animal feroz", na amoralidade da sua política, na mentira total em que transformou toda a actividade governativa, na impotência face a uma crise nacional que agravou e uma crise internacional que ignorou, adiou e, por isso mesmo, também agravou. Entrando num novo ciclo político após as eleições, estragou todas as oportunidades, numa cegueira que vem da sua incontestável força anímica, e que se transformou numa dupla recusa: recusa de reconhecer a perda da maioria absoluta e recusa em mudar. Entrou numa nova situação com um governo velho e cansado, habituado a pôr e a dispor no Parlamento, e sem outra política que não fosse continuar a fazer o mesmo, mesmo que para isso tivesse que provocar novas eleições.

Pensava ele que tinha tempo para inverter a situação fazendo um braço-de-ferro, como se o seu braço tivesse a força de 2005. Mas surgiu um novo elemento de aceleração que acentua ainda mais a esquizofrenia com que um Sócrates minoritário pretendia continuar como se nada tivesse acontecido: a crise grega. Não custava perceber, pelo modo como o Governo avançou por aquilo que gosta, o betão das grandes obras públicas e o keynesianismo bastardo do "investimento público", que o controlo do défice seria para 2013, quando a União Europeia exigia contenção. E mesmo assim ia-se ver, porque muita coisa podia mudar entretanto e empurrar os problemas para o futuro é um dos aspectos do voluntarismo de Sócrates.

O programa para 2010 era gastar e continuar a gastar, até a crise grega e as quebras e ameaças de baixa nos ratings das agências internacionais terem exigido fazer em 2010 aquilo que era apenas para 2013. Quem viesse a seguir que pagasse a crise, e quem vem a seguir no fim da década e na próxima década já tem garantida uma vultuosa conta deixada pelo Governo actual, que faz as obras para os que vem a seguir pagarem os custos. Mas a crise grega fez soar os alarmes todos e então a esquizofrenia aumentou: cada inauguração, hospitais, creches, pontes, linhas de caminho-de-ferro, soa agora como um passo na direcção da "situação explosiva" de que o Presidente falou e de que Manuel Ferreira Leite fala solitária há ano e meio. Pois é, o virtual é socrático, o real cavaquista e leitista.

E quanto mais Sócrates se enterra na negação do real, mais este lhe bate à porta. Até o próprio parece começar a aperceber-se disto, e a responder a este fim dos tempos numa fuga em frente obstinada, porque é da sua natureza, mas confusa e caótica. Já toda a gente percebeu tudo isto menos os intelectuais orgânicos "socráticos", um conjunto modernaço de gente que tem o coração no Bloco de Esquerda, mas a carteira no PS, ou melhor, no gabinete do primeiro-ministro. Gente que pouco preza a liberdade mas que tem acima de tudo um enorme fascínio pelo poder como ele se exerce nos dias de hoje, entre o culto da imagem, o pedantismo das causas "fracturantes", o vanguardismo social, o "diabo que veste Prada" ou Armani, e o "departamento dos truques sujos" à Richard Nixon, tudo adaptado à mediania provinciana da capital. A ascensão ao poder de uma geração de diletantes embevecidos com os gadgets, pensando em soundbites, muito ignorantes e completamente amorais, que se promovem uns aos outros e geram uma política de terra queimada à sua volta, é a entourance que o "socratismo" criou e vai deixar órfã.

Não sei se isto vai acabar com um bang ou com um ping, mas que já está no fim tenho poucas dúvidas. Isso não significa que todos os dias esta degenerescência do pensamento no poder não faça os seus estragos. Em que país um ministro das Obras Públicas pode pensar com esta superficialidade assustadora sobre os méritos de um TGV que era para nos unir à Europa e vai ficar em Madrid? Veja-se frase toda:

"Lisboa pode-se transformar, por exemplo, na praia de Madrid, em termos de condições turísticas, as condições que nós temos para desportos novos como o surf ou se nós pensarmos na articulação que Lisboa pode ter com Setúbal, com Cascais, com Sintra."

Não há uma ideia certa , desde a "praia de Madrid", aos "desportos novos como o surf", à "articulação que Lisboa pode ter com Setúbal, com Cascais, com Sintra". É tudo asneira. Mas há mais: em que país um ministro das Obras Públicas pode ver assim a inovação tecnológica? E de novo vale a pena transcrever a frase toda:

"Quando o comboio foi introduzido no século XIX, provavelmente as carroças que eram puxadas a cavalos caíram e, se calhar, na altura, os agentes económicos que estavam ligados à exploração das carroças, e que levavam as pessoas, ficaram extremamente tristes e todas as indústrias que estavam associadas, a indústria da palha, por exemplo. Reparem os industriais que estavam preocupados com o abastecimento da palha para os cavalos, ficaram preocupadíssimos porque, de facto, a sua indústria caiu."

Outra vez, é tudo asneira. "Indústria da palha"? Comboios competindo com carroças? Com um ministro que vê assim, em jargão de "choque tecnológico", o século XIX e a história e o impacto económico dos caminhos-de-ferro, não podemos senão ter um enorme receio sobre o modo como estes governantes vêem o TGV e o seu impacto económico.

Exemplos sobre exemplos desta degenerescência aparecem todos os dias. Já não são bonitos de se ver os tempos da crise do "socratismo", mais ainda vão ser piores os tempos da queda do "socratismo". Claro que isto é tudo a superfície efémera. O fundo é a perda de competitividade da economia portuguesa, o défice descontrolado, a dívida que ninguém sabe como vai ser paga, o desemprego e o empobrecimento dos portugueses, o país cada vez mais longe da Europa. Mas a superfície traduz um ambiente, uma ecologia, um "estado" de podridão. Na verdade, como a sabedoria popular dos provérbios afirma, o peixe apodrece pela cabeça. Historiador

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