Legislar com reserva mental

Maria José Nogueira Pinto

DN20100114

Na sexta-feira passada, fui parte, pela primeira vez, de uma sessão parlamentar em que a maioria de esquerda estabeleceu a sua unidade, para uma vitória pírrica, numa declarada reserva mental. Todos sabemos que o Parlamento e a actividade parlamentar estão hoje, aqui como em outros lados, prisioneiros de coreografias, efeitos especiais, dependências de interesses diversos, cálculos de sobrevivência, negociações forçosas, enquanto a representação dos cidadãos vai ficando mais adulterada em nome de um pseudopragmatismo político. Mas apresentar uma proposta de lei cuja substância é contraditória com o subterfúgio de que essa contradição se resolva por portas travessas, ou apoiar essa proposta, após dura crítica, por força de acordos de bastidores, não é pragmatismo nem realismo político, mas um logro indecoroso.

A proposta do Governo parecia querer abrir o casamento aos homossexuais, em nome de uma igualdade assente em direitos simbólicos (?), mas revelou-se como um mero contrato civil encapotado. Casa-se para constituir família, mas os homossexuais ficam de fora, não há filiação neste casamento, antes se consagra expressamente na lei uma capitis diminutio da sua capacidade parental. Afinal não são iguais, diz a proposta de lei que vem para estabelecer a igualdade. Ou são iguais no casamento, mas não são no resto. A simbologia parece ter estabelecido os seus próprios limites…

O Bloco de Esquerda, grande defensor desta questão e proponente de um projecto, com o qual não concordo em absoluto mas reconheço coerência intrínseca, subiu à tribuna para zurzir a proposta do Governo, acentuando o seu cariz hipócrita e a sua evidente inconstitucionalidade, para minutos depois lhe dar o voto da sua bancada. E o PCP, que tem nesta matéria os chamados mixed feelings, disciplinou-se ao máximo para guardar de Conrado o prudente silêncio.

Para ocultar este despudor, Sócrates, em manifesta perda dos seus sinais vitais, fazia um choradinho lamechas sobre o carácter histórico da iniciativa que, à falta de melhor, estreava a agenda legislativa deste Governo. Enquanto fingiam discordar, PS e BE atacavam a proposta do PSD pelos mesmos motivos com que, bem mais a propósito, as suas propostas podiam e deviam ser criticadas.

Apesar de a esquerda ter feito a unanimidade para o agendamento da Petição sobre o referendo, tratou-a com a displicência com que se afasta uma mosca. Confirmámos que não gostam de consultar o povo, nem mesmo quando o referendo consta do seu próprio programa eleitoral, como se viu com o Tratado de Lisboa.

Tudo isto só se explica pela táctica de um passo a seguir ao outro, hoje o casamento, amanhã a adopção, tudo previamente combinado, um pequeno recuo, uma aparente cedência para garantir um avanço definitivo, noutra sede, já sem ónus políticos excessivos.

Durante toda a manhã vi perpassarem várias sombras: a desconsideração, tão mais cruel quanto apenas implícita, das pessoas do mesmo sexo que aspiram a casar e a quem foi simulado o reconhecimento mitigado de um direito em nome de uma igualdade logo desmentida; o desprezo pela opinião dos cidadãos, não apenas dos peticionários do referendo mas de todos aqueles que em sondagens e estudos de opinião manifestaram o desejo de ver uma questão eminentemente de sociedade aprofundada e debatida extramuros do Parlamento; o recurso do legislador à reserva mental com o único objectivo de poder vir a dar o dito por não dito. Uma manhã historicamente triste.

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