Salvar o país deste Estado, e o Estado deste governo

Público, 20100203, José Manuel Fernandes

Portugal gosta de viver à sombra do Estado, mas raras vezes um governo quis controlar tanto o Estado como o que temos


Ontem de manhã fui ao Portal do Governo, abri um por um os perfis profissionais de todos os membros do Governo, e confirmei uma suspeita: nenhum deles trabalhou a maior parte da vida no sector privado. A maioria nunca o fez. Alguns, poucos, exerceram vagamente a advocacia, mas há muito que não têm "escritório". Duas ministras terão ganho mais em direitos de autor do que com os proventos dos lugares que mantêm na administração pública. E até a "sindicalista" nunca trabalhou numa empresa, começou logo como funcionária da UGT. Considerando o conjunto dos ministros, o número total de anos passados no Parlamento ou em gabinetes ministeriais não deve ser muito diferente do acumulado a dar aulas em universidades públicas.

Perguntar-se-á: mas porquê a minha suspeita? E será que podemos tirar alguma ilação desta constatação? Na verdade não há mal intrínseco em se ter feito toda a carreira no sector público. Nem de tal se pode tirar qualquer ilação, sobretudo se pensarmos nos que dão aulas nas universidades. Contudo...

Contudo estamos perante um sinal dos tempos: o melhor (?) que o país foi capaz de produzir para depois lhe entregar a responsabilidade de o governar foi um grupo de quadros que nunca correu os riscos associados à actividade privada e sempre cresceu no ambiente protegido - mesmo que nem sempre glorioso - da administração pública. Sucede com este Governo, como poderia suceder com um governo liderado pelo PSD, talvez com pequenas nuances, e não deve surpreender ninguém: o sonho da maioria dos portugueses é, há décadas, há séculos, acolher-se no regaço protector do Estado. De preferência como seu servidor, se necessário como seu subsidiado.

Acontece que isto tem causas e consequências. As raízes desta maneira de ser mergulham na nossa muito particular história como povo e uma delas resulta bem evidente quando lemos a nova História de Portugal, coordenada por Rui Ramos. No texto que escreveu para a apresentação da obra, António Barreto não deixou de a destacar: "A omnipresença de um Estado que desempenhou todos os papéis, o de inovador e o de conservador, o de revolucionário e o de reaccionário, o de motor e o de obstáculo ao desenvolvimento, o de abertura e o de fecho ao mundo exterior, o de déspota e o de liberal. Parece que quase tudo começou e acabou no Estado. Conquista e reconquista, expansão e retracção, instrução e obscurantismo foram obra de um Estado que pouco espaço deixava para a sociedade de classes, grupos e homens livres e independentes."

Se assim foi desde a fundação da nacionalidade - "foi o Estado, isto é, o poder político organizado ou em vias de organização, que criou a nação, o que durou séculos", notou também António Barreto - dificilmente poderia deixar de ser hoje. Dificilmente poderia de ter hoje um peso ainda maior do que no passado, e nem devemos começar por falar da economia para o sublinhar. É verdade que, como ainda na sua mensagem de Ano Novo recordou o Presidente da República (que, como ex-primeiro-ministro, é um dos responsáveis pela situação), "Portugal tem já um nível de despesa pública e de impostos que é desproporcionado face ao seu nível de desenvolvimento", mas isso também sucede com outros países. O nosso problema é mais grave e mais fundo.

O nosso problema é que temos cada vez mais governo no Estado - e quando falo de governo, também incluo as autarquias regionais e locais - e cada vez menos sentido de Estado no Estado. A omnipresença da mão que tudo condiciona, ou mesmo tudo controla, agravou-se muito nos últimos anos, sob a batuta dos executivos de Sócrates, mas é um mal que vem detrás.

Vinte anos depois de termos iniciado o processo de privatizações, o número de empresas públicas - e dos gestores que por elas circulam - é muito maior. Dos hospitais EPE às empresas municipais. Trinta e cinco anos depois do 25 de Abril não se concebe que um alto quadro da administração pública não seja de "confiança política", tendo desaparecido por completo o espírito de lealdade independente e competente nos altos lugares da administração. Catorze anos depois de Guterres se ter entusiasmado com a reacção positiva dos mercados à sua vitória eleitoral, os dedos de uma só mão chegam para contar as empresas cotadas no PSI20 cujo destino (e até cuja cotação) não dependa, em maior ou menor grau, das suas relações com o Governo.

Por fim, cinco anos depois de Sócrates ter chegado ao poder graças a um acidente da história, são cada vez mais raros os concursos públicos e cada vez mais comum a negociação directa entre o poder e os empresários para "ajustarem", na ausência de um ambiente competitivo, negócios de todas as dimensões - a arbitrariedade começou com os PIN (Projectos de Potencial Interesse Nacional), que permitiam contornar a lei por decisão discricionária de um ministro, é hoje moeda comum quer se trate da adjudicação do Magalhães, da do Terminal de Alcântara, das concessões das barragens ou das obras de recuperação do parque escolar.

É triste, é trágico, escrevê-lo, mas o nível de discricionariedade - a nível central, a nível regional e a nível local -, associado à correspondente subserviência (e também à corrupção) não tem paralelo na história recente de Portugal, pois até antes do 25 de Abril havia mais respeito por certas regras. Quanto mais não seja porque havia mais pudor - agora qualquer vestígio de pudor é rapidamente sacudido em nome da "legitimidade democrática".

Podemos ter mil conversas tecnocráticas sobre o "programa" para tirar Portugal de crise e nos reaproximar da Europa, que serão inúteis. O nosso problema, como tantas vezes no passado, é de liberdade e de responsabilidade. Em nome da liberdade derrubámos o anterior regime, em nome da liberdade acabámos coma tutela militar sobre o poder político, em nome da liberdade reprivatizámos a economia. Entretanto, esquecemos demasiadas vezes a responsabilidade e agora, em nome da democracia, do "voto do povo", querem limitar-nos a liberdade. É tempo de dizer "basta".

E será que não há aí ninguém capaz de assumir as consequências políticas deste diagnóstico? Talvez não, pois bem sei o que custaria fazê-lo: Portugal é o que é há muitos séculos.

Jornalista

Comentários

António Costa disse…
De que nos queixamos? Está podre o regime, tresandam as instituições, promulgam-se leis mesmo contra o sentimento e a coerência do promulgador? Que tem de especial?
Já conseguimos o mais importante: Deus não tem nada a ver com isto. já demos o segundo passo: A Pátria é letra morta que de Portugal já só se fala circunstancialmente para enevoar a secundarização face à Hispania de que fazemos parte. Está avançado o terceiro passo: o divórcio, o aborto e o casamento homosexual já aboliram o valor da Família para construção de um mundo humano.
Queixamo-nos de quê afinal? de a passos largos estar a ser erradicada a humanidade do coração do homem?
E que falta faz essa tensão de transcendência emprestada a cada um pelo criador ao consumismo materialista que assenta que nem luva ao individualismo desumano?
Que nos interessa, a nós cultos, sábios, omnipotentes, que graças a um logro envolto na falácia da globalização, aumente o universo dos escravizados sob o jugo dos poderosos?
Não gostam? não querem o que lhes impingimos? Pedem (porque não têm forma de exigir) um referendo?
Coitados, deixemo-los iludidos, na convicção de que o seu querer nos interessa para alguma coisa.
É o que eu quero e como eu quero.
Assim pensava Hitler, que também foi eleito, e pelo poder que lhe foi entregue de bandeja fez o que fez.
Cale-se portanto a voz lamurienta e deixe seguir o "buldozer" que está a realizar a obra prima de arrazar Portugal!
António Costa

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