Porque não: a força da razão

Público, 20091213 Gonçalo Portocarrero de Almada

Espera-se que os representantes da maioria não cedam à tentação da precipitação mas dêem voz à nação


É recorrente, entre os defensores de um eventual casamento entre pessoas do mesmo sexo, a afirmação de que uma tal reforma é juridicamente viável e politicamente irrecusável. Acresce, no seu parecer, que os já cônjuges nada podem objectar a um eventual casamento entre pessoas do mesmo sexo, pois uma tal reforma do regime do casamento civil não afectaria o seu estatuto matrimonial.

A falácia é óbvia, porque a razão que não permite que se outorgue carácter conjugal a esse tipo de uniões, sejam ou não entre pessoas do mesmo sexo, não é formal mas substancial, ou seja, não tem que ver prioritariamente com os conceitos ou com o seu enquadramento institucional, mas com as realidades em causa: não é admissível considerar juridicamente como matrimonial uma união que o não é.

Quem opta por constituir uma família, unindo-se, para esse efeito, a uma pessoa do outro sexo, opta pelo matrimónio; quem prefere ficar só, ou unir-se a uma pessoa do mesmo sexo, ou ainda a uma pessoa do outro sexo mas sem o propósito de constituir uma família, opta por uma vida não matrimonial. Portanto, não são o Estado, nem a sociedade ou a religião que impedem aos parceiros de uma tal relação a condição matrimonial, mas são os próprios que, ao optarem por uma união não conjugal, rejeitam o casamento.

Não se pode exigir a ninguém que case, mas também não se pode conceder o estatuto conjugal a quem positivamente não quer casar, nomeadamente para viver uma relação homossexual. Se for o caso, outorguem-se algumas prerrogativas dos cônjuges aos parceiros de uniões não matrimoniais, excepto a adopção, mas não se lhes conceda o que não são, não por causa de nenhum preconceito, mas por razão da verdade da sua situação não conjugal. Por razão, afinal, da sua própria opção de vida.

Por outro lado, não é verdade que um eventual casamento entre pessoas do mesmo sexo deixaria incólume o matrimónio natural, que é heterossexual por essência. Se, por absurdo, se concedesse a todos os videntes o estatuto de médicos, não colheria afirmar que estes, que não deixariam de ser o que já são, não seriam lesados pela ascensão daqueles à sua categoria profissional. Na realidade, se a lei permitisse essa aberrante equiparação, os verdadeiros clínicos teriam que se diferenciar dos seus falsos colegas, cuja indevida titulação profissional seria também enganadora para o resto da população, que correria o risco de levar gato por lebre, à conta dessa simulação jurídica.

Pois bem, se os que vivem uma relação afectiva não matrimonial fossem considerados civilmente casados, todos os que já o são veriam significativamente alterada a sua condição, por força dessa abusiva equiparação. Em consequência, os verdadeiramente casados só teriam duas alternativas: renunciar ao seu estatuto conjugal civil, para evitar uma igualdade que, para além de falsa, os não dignificaria; ou então acrescentar à sua condição matrimonial uma menção que os diferenciasse dos ditos casamentos civis não verdadeiramente matrimoniais.

Seria então necessário distinguir dois tipos de casamentos civis: o dos que são legalmente casados e, de facto, também o são, e que seria o matrimónio propriamente dito, ou casamento natural; e o dos que, sendo legalmente casados, de facto não o são, porque a sua relação não é de tipo conjugal, e que seria aplicável a todas as outras uniões, nomeadamente a estabelecida entre pessoas do mesmo sexo. Nesta conjuntura, ser casado, em termos jurídicos, pouco ou nada significaria, pois também os de facto não casados seriam, de iure, casados, o que é um absurdo e uma contradição.

Não seriam apenas os que vivem uma verdadeira união conjugal as únicas vítimas desse embuste legal, porque todos os outros cidadãos seriam também prejudicados por essa fraude jurídica. Como poderia o cidadão comum distinguir os médicos, que o fossem de verdade, dos que o não fossem na realidade mas, por manigâncias políticas, tivessem ilegitimamente obtido esse estatuto legal?

A questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo não diz principalmente respeito a conceitos abstractos ou a sibilinas definições jurídicas, mas à verdade e à dignidade das pessoas e das instituições. Propor esse tipo de casamentos não é querer a quadratura do círculo, é pior: é exigir que, por um capricho ideológico, se passe a chamar quadrado ao círculo e círculo ao quadrado. É mentir, porque é outorgar a condição de cônjuge a pessoas que o não são, na realidade, mas que, por um exorbitante privilégio político, teriam obtido esse estatuto legal, em detrimento dos que optaram pelo verdadeiro matrimónio. É a perversão do casamento civil, que, desta feita, ficaria reduzido a uma qualquer relação.

Frente à insistência dos lóbis minoritários que, por isso, temem o referendo popular e esgrimem, como único argumento, a arbitrariedade da sua pretensão, espera-se agora que os representantes da maioria não cedam à tentação da precipitação mas, com a ponderação que a sua magistratura exige, dêem voz à nação e oponham, à razão da força, a força da razão. Contra a mentira e a hipocrisia da falsificação do casamento civil, exige-se a coragem da verdade na defesa da dignidade matrimonial, porque é indeclinável o dever de chamar às coisas aquilo que são. Licenciado em Direito e doutorado em Filosofia. Vice-presidente da Confederação Nacional das Associações de Família (CNAF)

Comentários

Dionysos disse…
É curioso verificar que sempre que se pretende refutar uma tese contrária, invarialvelmente surge a classificação "falácia". Lamentavelmente, quando conferimos as razões que justificariam tal classificação, constatamos demasiadas vezes que o termos "falácia" é usado abusivamente. É o caso deste artigo de opinião.

O problema do casamento heterosexual é a banalização do mesmo ao longo da história. Não vale a pena recuar séculos. Falemos do presente e do passado recente: qualquer um se casa, por mais ignorante que seja das respectivas obrigações. E nem sequer me refiro aos milhares de casamentos católicos que são realizados apenas pelo aspecto cénico e por insistência das famílias dos noivos. Esses mesmos noivos que nunca vão à missa, excepto quando são os protagonistas: baptizado, eventual 1ª comunhão, casamento, funeral. Refiro-me, aqui, apenas ao casamento civil, uma vez que não é a igreja que está a discutir internamente a aceitação dos casamentos gays. Um rapaz e uma rapariga que não façam ainda a mínima ideia de quem são e do que querem ser, podem casar e todos acham isso um direito normal. Mais: são incentivados por família e amigos para a reprodução, como se ter e criar um filho fosse uma banalidade... em contrapartida, um casal homossexual, trabalhador, contribuinte, cidadãos no pleno usufruto dos direitos e obrigações, pretende casar, então levanta-se o cabo das tormentas para enfrentar tal pretensão... como se esse estatuto de "casado" fosse algo de muito criterioso, a que só alguns têm legítimo acesso.

Por falar em falácias, é de referir que não é intelectualmente honesto comparar um casamento com o exercício legítimo de uma profissão qualificada. Mais uma vez, é entre os respectivos defensores que o casamento tem alguns dos seus detractores... são assuntos de natureza tão distinta, qua não é possível a analogia. E acrescente-se igualmente que considerar o casamento como reservado àqueles que pretendem constituir família e união de facto para aqueles que pretendam viver juntos sem ter filhos é também uma inovação jurídica. Quem defende essa tese deve estar preparado para defender a anulação compulsiva do casamento sempre que de um casamento não resultem filhos, independendentemente das razões: infertilidade, mudança de convicções, alterações de condições materiais de subsistência, etc...

Enfim, a sociedade somos todos e, uma vez que os outros têm a amabilidade de conviver pacificamente connosco, devemos retribuir a gentileza. Até porque a alternativa não é viável.

Dito isto, não devemos ser relativistas. A sociedade não deve aceitar aquilo que considera intolerável. Por consequência, defendo o referendo. E votarei "não" ao casamento gay e "não" à adopção de crianças por casais gays. Se isso mudará alguma coisa, não sei. Também votei contra a liberalização do aborto e, no entanto, tenho de conviver com o facto de uma parte dos impostos que pago ser aplicada na matança indiscriminada de seres humanos que têm a infelicidade de ser gerados em ventres sem consiciência... Mas não é por isso que deixo de reconhecer legitimidade e racionalidade à lei. É que, precisamente, para a sociedade, o intolerável era a situação anterior. Por vezes, somos a minoria e há que saber conviver com isso. O Galileu deu-nos a lição de que ter razão não basta.

Professor de Filosofia

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António