Da importância das filhoses
Público, 20091224 Helena Matos?
De filhós em filhós vai-se esfumando a realidade, só fica a imagem das filhoses e eu espero que o espírito natalício venha
O espírito natalício deve ser como os cremes que tiram as rugas: é suposto impregnarem-nos a pele, entrarem na profundidade do nosso ser e tornarem-nos resplandecentes. Pois será assim com toda a gente, mas infelizmente não comigo. Todos os anos, mal as iluminações surgem, espero que o milagre de espírito natalício aconteça. Mas não acontece. Donde acabar invariavelmente a fazer na semana do Natal tudo aquilo que é suposto andar a fazer desde o início do mês e, para mal dos meus imensos pecados, cabe-me invariavelmente escrever nestes santíssimos e enervantíssimos dias. E é aí que caio na irritação da crónica boazinha.
Uma crónica que seja uma espécie de versão adulta das redacções sobre a paz, os golfinhos e a salvação do planeta que as criancinhas escrevem laboriosamente. Uma crónica que não ofenda, que não vá contra o espírito "sininhos a tilintar", muitos beijinhos, menino Jesus nas palhinhas característicos da época... e o maldito do teclado a puxar-me para a política, os casamentos gay, a dívida, a alegada crispação, as reformas que não foram feitas e o controlo da comunicação social. Não pode ser. E como o que não pode ser tem muita força penso em filhoses como outros recitam mantras. Filhoses de abóbora, estendidas, cortadas, em forma de flor, com ou sem aguardente, de laranja... E de filhós em filhós vai-se esfumando a realidade até que só fica a imagem das filhoses e assim rodeada desta versão comestível das estrelas que são as filhoses eu espero novamente que o espírito natalício venha. Infelizmente o mais que me ocorre é uma fúria desatinada com a frase mais estúpida da criação: o Natal é quando um homem quiser. Só mesmo os homens é que devem querer tal coisa. Experimentassem eles ter de comprar prendas e organizar uma ceia mais um almoço nestes tempos de famílias recompostas e logo viam que o Natal felizmente só dura 24 horas. Aliás, não sei muito bem o que será do Natal nas próximas décadas mas algo me diz que estas gerações de filhos e netos de divorciados arranjarão outra forma de o festejar, pois geração alguma sobrevive a este nomadismo gastronómico-afectivo que implica almoçar em casa da mãe e jantar em casa do pai, sem esquecer os avós ao quadrado e as perguntas enervantes das criancinhas sobre os parentescos.
Portanto, voltemos às filhoses ou mais propriamente à mesa que é um assunto que me interessa e que talvez me permita fazer a tal crónica boazinha. Tenho como um dos maiores mistérios do Natal e da comunicação social umas extensas reportagens sobre mesas de Natal. Algumas até são de autor ou, insuportável expressão num país deste tamanho, de "gente famosa". Perante a parafernália que colocam nas mesas, verifico que não sobra espaço para a comida: troncos, velas, frutos, bolas, fitas, enfim tudo menos comida ou espaço para ela.
O outro mistério são as recomendações sobre o Natal saudável. Não há espírito natalício, carnavalesco ou de semana santa que aguente tanta mania com a saúde. Tudo tem de ser saúde, gerar saúde, aumentar a saúde. Valha-nos o Menino Jesus, que resiste às gripes naquele desnudamento, e as filhoses, que se obstinam em sobreviver ao índice de colesterol.
Como é óbvio, não sei fazer crónicas boazinhas. Logo, vamos ficar por aqui, até porque é quase Natal e eu tenho de refazer um presépio que a chuva derrubou, tornar apresentável uma árvore que parece a Torre de Pisa, resolver o recheio de um capão - deve ou não levar azeitonas? -, mais o problema de um bacalhau com couves salteadas e broa que nunca, mas nunca, fica em camadas como nas fotografias das revistas de culinária natalícia - essas irresistíveis publicações que estão para o aspecto da comida como a Playboy para a anatomia feminina - dou por finda esta crónica que o tempo está escasso e o assunto natalício tratado não a contento de todos, mas na medida do possível, que, afinal, é a medida mais humana que existe. Ensaísta
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