Por favor, não me contes a tua história
PÚBLICO
29.07.2008, Helena Matos
A história que os "retornados" tinham para contar não era a que os jornalistas achavam que deviam publicar
Este título assaltou-me quando, chegada de umas curtas férias, comecei a ler por ordem cronológica as edições do PÚBLICO que se tinham acumulado na minha ausência. Dia 12, sábado, o PÚBLICO dedicou pela primeira vez uma notícia sobre o acontecido a 10 na Quinta da Fonte. Na secção Local, uma notícia intitulada Desordem em Loures provocou nove feridos transcrevia umas breves declarações do Comando Metropolitano da PSP para em seguida passar a descrever, sem mais explicações, o assalto a um supermercado em Setúbal. Não sendo Lisboa em matéria de crime a cidade do Rio de Janeiro, nove feridos "numa desordem entre moradores" mereceria outro tratamento. A isto junta-se que, na véspera, dia 11, já estes acontecimentos tinham sido notícia. Logo aí tinha começado a explicação sociológica dos mesmos: "na Quinta da Fonte os habitantes têm 'carências sociais e económicas', estando muitos dos moradores no desemprego ou a receber o Rendimento Social Garantido" - declarou o presidente da Junta de Freguesia da Apelação ao Correio da Manhã. (Os pobres são, de facto, umas almas pacientes, pois não só raramente se revoltam como ainda têm todos os dias de ouvir, a propósito dos mais inqualificáveis comportamentos ou crimes, que isso se deve às "carências sociais e económicas" dos seus autores.) Como os acontecimentos seguiram o rumo conhecido, a 13, no PÚBLICO, e a 12, em jornais como o Diário de Notícias e o Correio da Manhã, caiu por terra a estapafúrdia versão dos moradores que se desforram das suas carências desatando aos tiros entre si.
Mas o que sucedia na Quinta da Fonte não era a história que os jornalistas, particularmente os do PÚBLICO, estavam preparados para contar. Na Quinta da Fonte, estava suposto que negros e ciganos se davam muito bem e cruzavam flamenco com kizomba. A existir alguma intolerância, ela teria de nascer no meio dos brancos, de preferência entre os taxistas, que cabem às mil maravilhas no papel de vilão racista nestas histórias. Na falta de um taxista, sempre se arranjaria algum branco que, tendo comprado um andar à antiga cooperativa, temia agora que tão colorida vizinhança lhe desvalorizasse o investimento.
A realidade trocou as voltas aos jornalistas. E estes ficaram sem palavras para contar a história, tanto mais que havia que escrever ciganos e pretos, termos que, por escrito, só podem existir para falar de festas, casamentos, tradições, ONG e denúncias do racismo praticado pelos brancos. E contudo estas páginas em que os jornalistas quase pedem "Por favor, não me contes a tua história" são tão eloquentes quanto aquelas onde se alinham as mais fantásticas reportagens. Não faço ideia se a cobertura dos acontecimentos da Quinta da Fonte, particularmente o atraso do PÚBLICO na cobertura dos acontecimentos, serão mais tarde objecto de estudo. Mas deveriam sê-lo. Tal como o deveria ser tudo o que não escrevemos sobre a partida dos portugueses de África. Entre Agosto de 1974 e o início de 1975 os portugueses em fuga de África mal se vêem nas páginas dos jornais. É claro que se fala deles mas com o incómodo e os rodeios de quem tem de dar uma má notícia no meio duma festa. Esta é a fase em que os fugitivos são necessariamente brancos pois assim facilmente se integram no estereótipo que deles traçam homens como Rosa Coutinho que os classifica como "elementos menos evoluídos que têm medo de perder as suas regalias" ou Vítor Crespo que os define como "pessoas racistas que não abdicam dos seus privilégios".
Os jornalistas portugueses usam então tranquilamente expressões como "brancos ressentidos", "brancos em pânico" ou pessoas que "reivindicam um desejo de viver num mundo que já acabou" para referir a maior fuga de portugueses nos seus muitos séculos de História. Os primeiros a chegar, logo em Agosto de 1974, ainda tiveram jornalistas à espera. Mas semanas depois, quando a catástrofe se torna não só óbvia como incontornável, as notícias sobre o "regresso dos colonos" quase desaparecem e o que temos cada vez mais são longos artigos sobre a descolonização cheios de declarações de líderes ou candidatos a tal. Jornais como o Diário de Notícias, o Expresso ou O Século enviam repórteres para a Guiné, Angola e Moçambique. Estes relatam com detalhe e parcialidade as lutas pelo poder nos diversos movimentos - sobretudo em Angola. O drama das pessoas parece-lhes uma fatalidade histórica. Fatalidade aliás inscrita no termo por que haveriam de ficar conhecidos: passada a fase caricatural dos "colonos brancos", ainda se experimentou "deslocados do Ultramar" ou desalojados. Por fim surgiu o salvífico termo "retornado", pese muitos deles não estarem a retornar a parte alguma porque simplesmente tinham nascido e vivido toda a vida em África. Refugiados, termo usado então e agora com bastante ligeireza, é que eles nunca puderam ser.
No início de 1975 era evidente que a descolonização não ia ser a página gloriosa que os jornalistas tinham sonhado mas daí a dar voz às suas vítimas ia um passo que não conseguiram dar. E. por isso. os mesmos jornalistas que poucos anos antes tinham denunciado vivamente a expulsão de Portugal do dançarino Béjart eram agora incapazes de criticar a expulsão de Angola e Moçambique de jornalistas estrangeiros. E de que eram acusados esses jornalistas? Fazer notícias fundamentadas em "opiniões particulares". Ou seja ouvirem as histórias das pessoas e não apenas as versões da História que os dirigentes repetiam.
Não existe uma data precisa para definir o momento em que se tornou patente que os retornados estavam longe de ser todos brancos, mas quando a ponte aérea os fez desembarcar às centenas de milhar em Lisboa tornou-se evidente que muitos deles eram negros, mulatos, indianos... com cores e hábitos de vida muito distantes do tal boneco do fazendeiro branco de chicote na mão, a que inicialmente foram reduzidos. Perante o mal-estar que a sua simples existência causava, os fugitivos passaram rapidamente da caricatura ao esquecimento. Foram precisas décadas para que grandes reportagens fossem dedicadas ao turbilhão de factos que fez deles retornados. O problema deles não era não terem uma história para contar. Simplesmente a história, a grande história que eles tinham para contar não era aquela que os jornalistas achavam que deviam levar para as suas redacções. "Por favor, não me contes a tua história" - é um pedido que nenhum jornalista verbalizará. Mas no silêncio e na falta de nexo de muitos textos é esse pedido que se encontra.
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Manuais escolares gratuitos. O anúncio governamental de que no próximo ano lectivo vai triplicar o número de alunos carenciados que têm acesso a manuais escolares gratuitos é uma péssima noticia para todos os portugueses à excepção daqueles que editam livros escolares. Em primeiro lugar ninguém valoriza e respeita o que é gratuito. Todas as famílias deveriam contribuir, com pouco que fosse, para custear os manuais e demais material escolar. A isto junta-se que uma aula não é um pretexto para utilizar manuais donde a obrigatoriedade do manual ser, em si mesma, muito questionável. A maior parte desses manuais não só é péssima como absolutamente dispensável. Por fim, não faz sentido que no fim de cada ano lectivo, os manuais, sejam eles pagos pelas famílias ou dados pelas escolas, acabem no lixo. Eles podem e devem ser reutilizados. Aliás são-no em países muito mais ricos que Portugal e mesmo entre nós em alguma escolas privadas. Afinal não por acaso o assistencialismo e o desperdício costumam andar de mãos dadas.
Fundações. Agora que a Casa dos Bicos foi destinada, pela CML, à Fundação Saramago parece-me ser de acautelar o destino da Torre de Belém, do castelo de Guimarães e quiçá das próprias ruínas de Conímbriga. Dada a velocidade a que a pátria produz escritores não haverá pedra sobre pedra neste rectângulo que não corra o risco de ser afectada a uma fundação. Mas o pior neste "estado albergue das fundações" é o que nos espera de querelas constrangedoras. Viúvas, famílias, fundações e ilustres finados são uma mistura a evitar por qualquer governo, autarquia ou povo que queira ter uns dias de paz.
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