Os juizes nao vao ao futebol, Helena Matos, Publico, 080701
Os juízes não vão ao futebol?
01.07.2008, Helena Matos
Qual é a noção de dever dos juízes que se auto-suspenderam no Tribunal de Santa Maria da Feira?
Se não vão deviam ir. Pelo menos os juízes portugueses deviam entrar num estádio e ficar lá em dia de jogo sofrido para entenderem como, até quando o desfecho é catastrófico, não existe a possibilidade
de a equipa, derrotada ou mesmo vexada, abandonar o campo. De igual modo não podem os jogadores e respectivo treinador meter férias para na semana seguinte evitarem ser postos de novo à prova.
Agora que a Espanha se sagrou campeã da Europa, até podem os nossos juízes aproveitar para se informar um pouco sobre a personalidade de Luis Aragonés, o treinador que levou a selecção espanhola ao triunfo. Aragonés é um homem velho não só porque no mundo do futebol se envelhece cedo mas sobretudo porque Aragonés nem sequer se preocupa em manter um ar desportivo e jovem como faz Ferguson, o outro idoso do universo da bola. O barrigudo, despenteado e sempre com um ar cansado e desorientado Aragonés é o que de mais parecido existe com um reformado rabugento, eternamente de fato de treino e óculos a precisarem de ser substituídos, que recusa despachar-se na fila das Finanças mesmo que isso gere irritações e suspiros nos jovens activos e modernos que aguardam impacientes pela sua vez. Pois o velho Aragonés, tão mal visto e tão mal quisto que partiu para este Europeu já antecipadamente despedido do cargo de seleccionador espanhol, o Aragonés sobre o qual se disse e escreveu em Espanha o que de pior havia para dizer e escrever até àquele jogo em que a Espanha venceu a Rússia e ele se tornou no "técnico genial", explicou sucintamente a vitória declarando que cumprira o seu dever. Perceberam bem? Ele falou do seu dever. E tal como ele falaram todos os outros, fossem vencedores ou derrotados.
Nada sei nem quero saber de futebol. Por mim o dito podia acabar amanhã - e com ele boa parte dos eventos desportivos - que não lhe dava pela falta, mas tenho de reconhecer que fora do mundo do desporto palavras como dever e brio se ouvem cada vez menos. Dirão que tudo isso não passa duma estratégia para que o povinho continue a sustentar clubes e dirigentes e sobretudo a distrair-se com este "novo ópio". Provavelmente isso nem é mentira, mas não é grave que o desporto, com particular ênfase para o futebol, recorra a esta estratégia. O que é grave é que, caso Aragonés não fosse treinador de futebol, as suas palavras soariam estranhas, quiçá inconvenientes. Afinal quando foi a última vez que ouvimos um líder político falar de dever e deveres? De brio? E mais raramente ainda o que aconteceu à noção de responsabilidade dos altos cargos da administração pública?
Onde param o brio e o sentido de dever dos detentores de poderes não inalienáveis do Estado como a justiça e a segurança? Por exemplo, qual é a noção de dever dos juízes que se auto-suspenderam no Tribunal de Santa Maria da Feira? Mesmo deixando de lado que ninguém naquela profusão de togas e saberes tivesse sido capaz de investigar o nebuloso processo que levou à construção do tribunal - o tal que ameaça ruína apesar de nem contar 30 anos -, é preciso ter uma noção muito autista do que é a justiça e nunca ter ouvido a palavra dever para achar que perante um caso de agressão a juízes a melhor solução é suspender o funcionamento do tribunal.
Todos os dias são agredidos contínuos e professores nas escolas, técnicos de saúde nos hospitais, simples cidadãos no meio da rua. Essas pessoas, ao contrário do que acontece quando os juízes são agredidos num tribunal, não só não têm o poder de se auto-suspender como os seus agressores nunca são apanhados em flagrante delito. Pior, caso os agredidos vão a tribunal na qualidade de queixosos percebem rapidamente que a lei não os protege e que não raramente os juízes tendem a colocar vítimas e agressores no mesmo patamar.
Não faz certamente parte do dever dos juízes deixar-se agredir mas se, ao primeiro revés, em vez de confrontarem a sua tutela, abandonam os cidadãos, lesando todos aqueles que têm processos pendentes e degradando ainda mais a imagem dos tribunais, temos de nos interrogar sobre que juízes tem o país andado a formar. Portugal tem investido muito na formação dos juízes. Estes são bem pagos quer por comparação com os outros portugueses quer até com os seus congéneres estrangeiros. Todo este investimento foi também acompanhado pelo habitual discurso sobre a necessidade de acatarmos as decisões dos tribunais mesmo quando de todo em todo elas parecem saídas duma antologia do teatro do absurdo. O resultado é pouco menos que catastrófico. Aos já conhecidos maus resultados de funcionamento da justiça propriamente dita, à descrença que sobre ela se instalou na sociedade portuguesa junta-se agora o óbvio ululante de que as actuais gerações de juízes podem conhecer as leis mas não têm qualquer sentido de dever. O velho Aragonés, esse, não deve saber nada de leis, mas parece-me muito mais bem formado.
Onde andam
- Os defensores de Foz Côa?
À hora a que escrevo, nesta segunda-feira, José Sócrates estará em Bragança a assinar o contrato de adjudicação para a construção da barragem do Baixo Sabor. A esta mesma hora gostaria de saber onde estão e o que têm para dizer aqueles que, há treze anos, se opuseram à construção da barragem de Foz Côa. A barragem do Sabor tornou-se mais ou menos inevitável desde que se suspendeu Foz Côa. Na época ninguém fez contas aos custos económicos e ambientais da suspensão da barragem de Foz Côa. Um desses custos está agora aí na construção da barragem do Baixo Sabor e no quase apagamento do que aconteceu em Foz Côa.
Em 1994, com o PS já a cavalgar a onda que levaria Guterres ao poder e mediaticamente aliado a uma esquerda que ditava as regras do bom gosto, transformou-se a questão das gravuras de Foz Côa num cavalo de batalha contra o cavaquismo. Este estava exausto e ninguém foi capaz de defender a barragem e sobretudo de dizer que todo aquele alegado interesse internacional pelas gravuras se esvairia em pouco tempo. Os turistas prometidos nunca apareceram, os arqueólogos levantaram a tenda e partiram para outras cruzadas. Sobraram os portugueses que pagaram o que lá está da barragem, mais o parque que ninguém visita, as viagens e os trabalhos duns investigadores estrangeiros para que falassem de Foz Côa, os filmes que ninguém viu mas "fariam renascer o interesse por Foz Côa" e o museu que depois do falhanço de tudo o mais esse é que "vai levar gente a Foz Côa". O pior é que não só pagamos tudo isto como ainda vamos perder o Baixo Sabor. A quem se pode mandar a conta?
- Os indignados das urgências hospitalares?
É sem dúvida um dos grandes mistérios da actualidade. Falo do desaparecimento dos piquetes que esperavam Correia de Campos à porta de qualquer hospital. Morria um centenário numa urgência hospitalar e de imediato se perguntava a Correia de Campos como era isso possível. Agora a indignação acabou. No Alentejo, uma criança foi atropelada e nenhuma ambulância respondeu ao pedido de socorro, acabando a ser transportada por um médico, no seu próprio carro. No Algarve, uma mulher caiu e esperou até morrer por uma ambulância que não existia. No pátio duma escola do Montijo, um aluno caiu inanimado. Durante meia hora, professores e colegas tentaram convencer o INEM a enviar uma ambulância. O jovem acabaria por morrer... É claro que não existe uma ambulância disponível parada à espera de cada um de nós. Mas são muitos os falhanços. Curiosamente, agora ninguém se indigna e muito menos chegam aos jornais as gravações das conversas telefónicas entre o INEM e os bombeiros.
Jornalista
Comentários
Se bem que me possam acusar de "corporativista", fiquei espantado com o teor do artigo de opinião da jornalista Helena Matos (HM), publicado no jornal “Público” de 1 de Julho de 2008, uma vez que o mesmo parte de um facto falso, tecendo a jornalista HM diversas considerações com base nesse mesmo facto.
Vejamos :
Afirma ela, a fim de mais adiante dar uma pretensa lição de moral aos Srs. Juízes, que os Juízes do Tribunal de Santa Maria da Feira, na sequência da já tão dissecada agressão física de que foram vítimas, “se auto-suspenderam”.
Mas não foi nada disso que sucedeu.
Na realidade, o conjunto dos juízes do Tribunal de Santa Maria da Feira limitou-se a suspender parcialmente a realização de actos judiciais.
Ora, a função judicial não se resume nem se restringe à realização de audiências de julgamento. Os Juízes e magistrados do Ministério Público continuam, todos os dias (alguns sete dias por semana...), a despachar em todos os processos, proferindo centenas de decisões diárias e milhares decisões semanais. Muitas dessas decisões relacionam-se com direitos fundamentais, outras com a determinação de actos processuais necessários e obrigatórios para que no processo nada obste ao seu normal prosseguimento (até ao julgamento e prolação de sentença). Acresce que, além dessas decisões, os juízes daquele Tribunal continuam a realizar as audiências e diligências de natureza urgente, salvaguardando os legítimos direitos fundamentais dos cidadãos.
Ou seja, a referida suspensão dos actos judiciais foi limitada ao estritamente necessário, continuando a desenvolver-se com normalidade o seguinte serviço :
a) Tramitação de todos os processos urgentes, designadamente com arguidos presos, providências cautelares, insolvências, promoção e protecção de menores, expropriações, acidentes de trabalho e doenças profissionais ;
b) Todos os julgamentos e diligências de tribunal colectivo que se possam realizar nas salas de audiências dos tribunais mais próximos ;
c) Todos os julgamentos e diligências de tribunal singular que se possam realizar nas instalações precárias e provisórias, desde que estejam reunidas condições de segurança.
Para não me alongar mais, remeto para dois “links” onde a situação se mostra escalpelizada com mais pormenor, :
http://www.inverbis.net/opiniao/campanha-anti-suspensao.html
http://www.asjp.eu/index.php?option=com_content&task=view&id=273&Itemid=1
Só a terminar, uma pequena referência ao facto de a jornalista HM referir que os Juízes portugueses são bem pagos quer por comparação com os outros portugueses quer até com os seus congéneres estrangeiros.
Desconhecemos onde é que a Srª jornalista foi buscar tal informação que plasma no artigo de opinião como uma verdade absoluta.
O certo é que da análise do estudo elaborado pela Comissão Europeia sobre a Eficácia da Justiça datado de 2005, resulta que os Juízes Portugueses, auferem uma remuneração anual ilíquida inferior à média europeia (sabendo que, tratando-se de valores ilíquidos, não são considerados os valores deduzidos para impostos e contribuições obrigatórias, que em Portugal são mais elevados que na generalidade dos restantes países europeus).
Além disso, a maioria dos países da Europa não impõe aos Juízes um regime de exclusividade no exercício da função jurisdicional, sendo nos mesmos admissível a cumulação com outras funções, designadamente a docência remunerada, emissão remunerada de pareceres e participação remunerada em conflitos de arbitragem.
Para um mais cabal esclarecimento veja-se, por exemplo :
http://www.verbojuridico.net/forense/juizes/opiniao03.html
Pedro Brighton
Juiz do Tribunal de Família e Menores de Setúbal