O preço da demagogia

Miguel Sousa Tavares, Expresso, 080708

Se passassem nas televisões um filme sobre os rabiscos de Foz Côa e outro sobre o curso do Sabor, as pessoas ficariam chocadas ao perceber aquilo que se decidiu preservar e aquilo que se decidiu destruir. O suposto Paleolítico derrotou o presente e o futuro.

1 A história das gravuras de Foz Côa e da futura barragem do Sabor é uma lição exemplar dos malefícios da demagogia, servida na política. Guterres tinha acabado de chegar a primeiro-ministro e, dos disponíveis dos Estados Gerais, foi buscar para ministro da Cultura Manuel Maria Carrilho (que, depois e quando a nave socialista começou a meter água, foi o primeiro a saltar fora e, desmentindo a máxima de Guterres de que ‘Roma não paga a traidores’, acaba por ser compensado com o melhor tacho de todo o Estado português - o de embaixador na UNESCO). Juntos à época, Guterres e Carrilho resolveram inaugurar o mandato com uma decisão grandiosa: cancelava-se a barragem de Foz Côa, já em construção, e a benefício da preservação de uns tacanhos rabiscos numas pedras, que alguns ‘sábios’ e alguns oportunistas decretaram ser gravuras paleolíticas. E nem a desfeita causada pela maior autoridade mundial na matéria - que, levado a ver os rabiscos, sentenciou que o suposto Paleolítico teria entre trinta e trezentos anos - abalou o entusiasmo e a determinação dos então governantes em jurar que, a partir daí, o património cultural teria prioridade sobre tudo o resto.

A barragem prevista foi, pois, suspensa e, quanto às gravuras, sabe-se o que aconteceu: as prometidas excursões de milhares e milhares de portugueses e europeus previstas jamais aconteceram; o novo modelo de ‘turismo cultural’, que ali se iniciaria, foi nado-morto; não aconteceram os trabalhos científicos anunciados nem o interesse mundial naquela fantástica descoberta. Em contrapartida, arranjou-se uns lugares vitalícios para funcionários do Paleolítico e, vá lá, vá lá, desistiu-se de lhes fazer a vontade gastando mais uns milhões num museu sem conteúdo e sem qualquer viabilidade económica. Mas a barragem fazia falta à EDP e fazia falta à regularização do curso navegável do Douro. Por isso, não avançando Foz Côa, avança a barragem do Sabor, cuja construção Sócrates acaba de adjudicar.

Acontece que o Sabor, para quem não conhece, é, talvez, o mais bonito rio de Portugal, o mais preservado, o mais selvagem. Se passassem nas televisões um filme sobre os rabiscos de Foz Côa e outro sobre o curso do Sabor, as pessoas ficariam chocadas ao perceber aquilo que se decidiu preservar e aquilo que se decidiu destruir. O suposto Paleolítico derrotou o presente e o futuro. A invocada cultura afogou a beleza - um contra-senso filosófico que nem o dr. Carrilho conseguiria explicar. Nós destruímos os rios (e em nome do ‘ambiente’, como explicou Sócrates) e depois gastamos dinheiro a construir, e ainda bem, fluviários para explicar às criancinhas o que é um rio. O problema é que, se as “gravuras não sabem nadar”, os rios não sabem protestar. E é assim que se governa, quando o mais fácil é ceder à demagogia.

2 Manuela Ferreira Leite tem toda a razão, quando denuncia a inutilidade de obras públicas que não são essenciais, que não obedecem a uma estratégia conhecida de desenvolvimento, que são lançadas quando se enfrenta uma crise e se tenta a todo o custo conter o défice, e quando a factura é remetida para os nossos filhos. E tem toda a coragem, quando ousa enfrentar o lóbi das obras públicas, que é o grande financiador dos partidos do ‘centrão’. Caiu-lhe em cima a CIP e a AICCOP, uma das associações do sector, justamente alarmadas. Diz o presidente desta última que “compete à iniciativa privada assumir-se como motor de desenvolvimento e o que nós pedimos é que o Estado crie as condições para se iniciar um novo ciclo de investimento”. Eu traduzo, para o caso de ainda haver alguém que não perceba: eles são iniciativa privada para os devidos fins de respeitabilidade e estatuto; mas só são iniciativa se o Estado lhes garantir as empreitadas e os negócios e só são privados para colherem os lucros, ficando os riscos para o Estado. É assim como se o merceeiro da esquina dissesse: ‘Se o Estado me garantir que compra todo o «stock» que eu não conseguir vender, eu garanto a minha iniciativa privada de comerciante’.

3 Quando não sabe o que há-de fazer para atrair as atenções, o Partido Socialista avança com modernices, a que gosta de chamar “propostas fracturantes. A última consiste num projecto de lei a declarar que não ser pobre é um “direito humano”, cuja violação constitui “crime”. A extrema inteligência desta proposta não é apenas a de imaginar que a pobreza possa ser erradicada através de uma simples lei da Assembleia da República; é também a de dar aos pobres, independentemente do motivo da sua pobreza, uma espécie de esmola moral: “Se eu sou pobre, é porque alguém é um criminoso responsável pela minha situação”.

Acontece que, como as estatísticas indicam, os números da pobreza estão e estarão a aumentar no futuro próximo. Consequência dos preços do petróleo, da sobrevalorização do euro, da subida dos juros. Mas não só: há uma nova categoria de pobres, talvez a mais dura, que é a da pobreza envergonhada e inesperada - que atinge todos aqueles que se endividaram, primeiro para ter carro, depois para ter casa própria, depois para fazer férias no Brasil ou em Cuba. Pobres que sempre fomos (em termos europeus), temos os mais altos índices da Europa de proprietários de habitação própria, de número de televisões por lar, número de telemóveis por habitante, número de pessoas a circular todos os dias em transporte individual, etc., tudo a crédito. Não sei quem possa ser o criminoso nestes casos, embora reconheça que, quando se vê o Estado a comportar-se como novo-rico, lançando aeroportos, TGV e auto-estradas sem necessidade e com a conta remetida para mais tarde, é grande a tentação dos cidadãos de fazerem o mesmo. Se o Estado - que é quem dá o exemplo e decide as políticas económicas - faz obra sem dinheiro, por que não hão-de as pessoas também gastar a crédito?

O problema português é, de há muito, a ausência de uma consciência colectiva que incentive e premeie o mérito, o trabalho e o risco. O que está subjacente à proposta do Partido Socialista é uma cultura de desresponsabilização individual, trocada pela crença de que ou o Estado ou Bruxelas terão de ter sempre resposta a cada uma das nossas necessidades. Muitos portugueses esperam sentados - ou de baixa ou de subsídio de desemprego - que lhes caia aos pés a oportunidade de enriquecer sem esforço, sem mérito, sem sacrifícios. Vivem protegidos por uma legislação laboral e social que tem como consequência mediata desproteger os outros, os que querem progredir por si e encontram um mercado ‘escaldado’ e desconfiado de todos, devido aos maus exemplos. Como dizia Victor Hugo, “haverá sempre pobres, o que não tem é de haver sempre injustiças”. É disso que se trata.

Comentários

Anónimo disse…
Críticas acutilantes e muito certeiras. Muito bem escrito, como é habitual!

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