A LENTA DESCIDA PARA A GUERRA
Diário de Notícias, 080728
João César das Neves
professor universitário
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt
Os jornais andam cheios com uma palavra que julgávamos extinta: guerra! Após 1945, o Ocidente prometeu acabar de vez com esse pesadelo e declarou solenemente: "Nunca mais!" Houve vários conflitos nos últimos 60 anos, mas em geral em zonas longínquas e, apesar de tudo, sem ultrapassar os limites locais.Agora porém fala-se cada vez mais de confrontos e embates com ramificações globais.Os cínicos não se admiram destas ameaças porque nunca acreditaram naquele voto piedoso. A guerra faz parte da natureza humana, dizem. Mas o mundo mudou muito neste campo. Graças ao progresso económico temos hoje cinco importantes protecções contra uma guerra global.A primeira é essa lembrança da pior de todas as guerras. Os avanços industriais aumentaram tanto a capacidade devastadora que a ruína de 1939 a 1945 foi inacreditável. Ligada a esta está a segunda protecção, porque o progresso continuou e o ser humano tem hoje armas ainda mais medonhas.Uma futura guerra pode ser final porque será assombrada pelo fantasma da aniquilação planetária.O progresso contribuiu também com uma protecção subtil: deu ao mundo a certeza ou a esperança de grande conforto e o desejo de o conservar. O globo vive crescentemente numa sociedade de classe média, comercial e financeira, onde a burguesia é dominante. Ela foi sempre o estrato mais relutante em combater porque, consumista e próspera, prefere a diplomacia à birra...As lutas nascem em geral de nobres ociosos ou proletários desesperados.As duas últimas razões são ideológicas, embora ligadas a esta dinâmica. A cultura contemporânea perdeu o culto da glória militar e a exaltação dos combatentes. Se agora um governo desenvolvido, mesmo americano, anunciasse uma conquista imperial, seria, não aclamado como antes, mas desprezado pelos eleitores. Por outro lado, a nossa crença nos direitos humanos leva-nos a respeitar os outros povos sem nos considerarmos superiores. Está obsoleta a teoria, antes comum, do domínio sobre os indígenas ignaros para bem deles e da civilização.Estes cinco elementos revelam como a evolução económica reduziu em muito o impacto agressivo de alguns traços da natureza humana: a cobiça, inveja e orgulho são hoje mais bem servidos pelo comércio que pela conquista, gerando aquelas protecções. Mas outros aspectos do nosso carácter contrastam com estes e criam o recente surto militar.O primeiro é o medo e desconfiança. O pavor gerado pelo 11 de Setembro de 2001 gerou uma hostilidade que ainda dura. A China e a Índia gerarão outros. A segunda causa, principal origem de todas guerras, é a busca da justiça. Os confrontos nascem em geral, não dos maus, mas dos que se julgam bons atacando os que consideram maus. Apesar de exaltarmos a tolerância e os direitos, continuamos a acusar e castigar os outros, agora não por origens étnicas mas opções ideológicas. Por exemplo, o Ocidente diz ter grande respeito pelos povos árabes, mas está disponível para insultar Maomé e os seus dogmas devido às posições muçulmanas acerca das mulheres, liberdade e violência. Toleramos tudo menos o que achamos intolerável. Como os nossos avós. Assim, o próximo conflito mundial nascerá do medo e castigo.Hoje tal cenário ainda parece longe, mas também em 1918 ninguém acreditava que 20 anos depois se estaria de novo em guerra. Já se percorrem paulatinamente as etapas que lá conduzem. Como em séculos anteriores, pequenos passos de agressão, insignificantes em si, descem patamares de onde já não se sobe. No terrorismo cada nova crueldade é marco a ultrapassar. Por razões inversas, a mesma progressão se dá na civilização.Após a libertação do Koweit em 1991 e a in- vasão bondosa da Somália em 1992 foi mais fácil o bombardeamento libertador do Kosovo de 1999. Isso tornou admissível os ataques punitivos ao Afeganistão em 2001 e Iraque em 2003. Que por sua vez fazem plausível uma ameaça ao Irão hoje. Cada assalto estabelece o nível de violência de onde se parte na vez seguinte. Este caminho levou de Bismarck a Guilherme II e daí a Hitler.
João César das Neves
professor universitário
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt
Os jornais andam cheios com uma palavra que julgávamos extinta: guerra! Após 1945, o Ocidente prometeu acabar de vez com esse pesadelo e declarou solenemente: "Nunca mais!" Houve vários conflitos nos últimos 60 anos, mas em geral em zonas longínquas e, apesar de tudo, sem ultrapassar os limites locais.Agora porém fala-se cada vez mais de confrontos e embates com ramificações globais.Os cínicos não se admiram destas ameaças porque nunca acreditaram naquele voto piedoso. A guerra faz parte da natureza humana, dizem. Mas o mundo mudou muito neste campo. Graças ao progresso económico temos hoje cinco importantes protecções contra uma guerra global.A primeira é essa lembrança da pior de todas as guerras. Os avanços industriais aumentaram tanto a capacidade devastadora que a ruína de 1939 a 1945 foi inacreditável. Ligada a esta está a segunda protecção, porque o progresso continuou e o ser humano tem hoje armas ainda mais medonhas.Uma futura guerra pode ser final porque será assombrada pelo fantasma da aniquilação planetária.O progresso contribuiu também com uma protecção subtil: deu ao mundo a certeza ou a esperança de grande conforto e o desejo de o conservar. O globo vive crescentemente numa sociedade de classe média, comercial e financeira, onde a burguesia é dominante. Ela foi sempre o estrato mais relutante em combater porque, consumista e próspera, prefere a diplomacia à birra...As lutas nascem em geral de nobres ociosos ou proletários desesperados.As duas últimas razões são ideológicas, embora ligadas a esta dinâmica. A cultura contemporânea perdeu o culto da glória militar e a exaltação dos combatentes. Se agora um governo desenvolvido, mesmo americano, anunciasse uma conquista imperial, seria, não aclamado como antes, mas desprezado pelos eleitores. Por outro lado, a nossa crença nos direitos humanos leva-nos a respeitar os outros povos sem nos considerarmos superiores. Está obsoleta a teoria, antes comum, do domínio sobre os indígenas ignaros para bem deles e da civilização.Estes cinco elementos revelam como a evolução económica reduziu em muito o impacto agressivo de alguns traços da natureza humana: a cobiça, inveja e orgulho são hoje mais bem servidos pelo comércio que pela conquista, gerando aquelas protecções. Mas outros aspectos do nosso carácter contrastam com estes e criam o recente surto militar.O primeiro é o medo e desconfiança. O pavor gerado pelo 11 de Setembro de 2001 gerou uma hostilidade que ainda dura. A China e a Índia gerarão outros. A segunda causa, principal origem de todas guerras, é a busca da justiça. Os confrontos nascem em geral, não dos maus, mas dos que se julgam bons atacando os que consideram maus. Apesar de exaltarmos a tolerância e os direitos, continuamos a acusar e castigar os outros, agora não por origens étnicas mas opções ideológicas. Por exemplo, o Ocidente diz ter grande respeito pelos povos árabes, mas está disponível para insultar Maomé e os seus dogmas devido às posições muçulmanas acerca das mulheres, liberdade e violência. Toleramos tudo menos o que achamos intolerável. Como os nossos avós. Assim, o próximo conflito mundial nascerá do medo e castigo.Hoje tal cenário ainda parece longe, mas também em 1918 ninguém acreditava que 20 anos depois se estaria de novo em guerra. Já se percorrem paulatinamente as etapas que lá conduzem. Como em séculos anteriores, pequenos passos de agressão, insignificantes em si, descem patamares de onde já não se sobe. No terrorismo cada nova crueldade é marco a ultrapassar. Por razões inversas, a mesma progressão se dá na civilização.Após a libertação do Koweit em 1991 e a in- vasão bondosa da Somália em 1992 foi mais fácil o bombardeamento libertador do Kosovo de 1999. Isso tornou admissível os ataques punitivos ao Afeganistão em 2001 e Iraque em 2003. Que por sua vez fazem plausível uma ameaça ao Irão hoje. Cada assalto estabelece o nível de violência de onde se parte na vez seguinte. Este caminho levou de Bismarck a Guilherme II e daí a Hitler.
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