Para termos espiões destes, prefiro o Google

Público 2012-06-01 José Manuel Fernandes

História de um encontro (breve) com Silva Carvalho e algumas reflexões sobre indignações e memória curta


·         Aconteceu no Verão passado. Num dia de Agosto. Num hotel de luxo de Lisboa. Encontrei-me com Jorge Silva Carvalho. Só bebi uma água com gás. Mas ele pagou a conta. É possível que esteja tudo nas suas agendas, telemóveis e computadores. Incluindo a água. 

O encontro ocorreu a pedido de Silva Carvalho. Depois de me ver fazer, na SIC Notícias, um comentário duro à sua actuação, enviou uma mensagem para a minha conta no Facebook. Queria encontrar-se comigo para me esclarecer. Nunca recusei, em toda a minha vida profissional, este tipo de encontros. Lá fui. E de lá saí mais esclarecido: o antigo superespião tinha-se em alta consideração e todas as dúvidas que lhe manifestei sobre a empresa em que trabalhava, a Ongoing, geraram respostas que adensaram as minhas suspeitas. Por isso, se algo me surpreende em tudo o que temos vindo a saber, é o número de pessoas (incluindo muitos jornalistas) que tinha em alta consideração o antigo director do SIED. 

O que temos vindo a descobrir - sobretudo devido a uma investigação judicial ordenada por este Governo, é bom não esquecer - é tão grotesco como inquietante. Parece hoje claro que a Ongoing contratou Silva Carvalho para montar um centro de informações privado. Tal como parece claro que este utilizou as suas ligações não só para recrutar outros ex-espiões, como para continuar a tirar partido, em benefício próprio e da sua empresa, dos recursos dos serviços de informação do Estado. Mais: relatórios como o produzido sobre Francisco Pinto Balsemão - o grande inimigo de Nuno Vasconcellos, o patrão da Ongoing - mostram não só uma mentalidade inquisitória e pidesca, como revelam, ao misturarem factos públicos com boatos demenciais, uma mistura de preconceito, ignorância e incompetência que não se sabe se é exclusiva de quem os produziu na Ongoing, se é comum aos serviços de informações de onde aquela gente veio. 

Desde que, há quase um ano, começaram a ser conhecidas as ligações e actividades dos ex-espiões da Ongoing que tenho vindo a defender algumas medidas de profilaxia mínima. A primeira passa pela modificação das normas que hoje permitem aos agentes dos serviços de informações transferirem-se de armas e bagagens para empresas privadas, levando consigo ficheiros e dossiers. Quarta-feira, no Parlamento, o primeiro-ministro veio dizer que essas reformas eram necessárias. Já o podia ter feito há meses. 

Outra medida profiláctica que também defendo desde o Verão passado - e que então era recebida com grande cepticismo - deverá passar pela clarificação da pertença simultânea a uma Maçonaria e aos serviços de informações. Entendo que, numa democracia e em liberdade, essa dupla lealdade devia ser clara, que nada justifica o estatuto "discreto" dos maçons que são, também, agentes secretos. 

Por fim, defendi uma limpeza das chefias dos serviços de informações, a generalidade delas nomeadas ainda pelo anterior Governo, e que o actual insiste em não fazer. Hoje começo a duvidar que chegue uma mudança de chefias: a cultura daqueles serviços, as suas eternas guerras intestinas e as muitas interferências políticas que tiveram no passado aconselham à sua refundação. E não ficarei muito preocupado se nos desprotegermos temporariamente: afinal, pelas amostras conhecidas, de clippings a relatórios tão abusivos como amadores, há boas razões para duvidar da real utilidade e eficácia de serviços como os que temos. 

Uma boa pesquisa no Google é mais eficaz e tem menos efeitos secundários na liberdade alheia.

Mas há mais aspectos a exigir esclarecimentos ou mudanças. Um exemplo: o responsável máximo do sistema de informações, Júlio Pereira, veio a público garantir que o relatório sobre o director do Expresso, Ricardo Costa, não tinha sido produzido pelos serviços. É bom que seja verdade, pois nada pode justificar realizar relatórios sobre jornalistas. Porém, estamos a falar de serviços que encontraram forma de conhecer a lista de telefonemas feitos pelo antigo jornalista do PÚBLICO Nuno Simas, um episódio que não deixa esquecer que até hoje não foi esclarecido como é que, em vésperas das eleições legislativas de 2009, correspondência interna do PÚBLICO foi violada e os emails foram parar às mãos de gente ligada ao Governo de então. É bom ter memória. 

Tudo isto para além de não se conseguir entender como é que um documento com a gravidade do relativo a Ricardo Costa não foi considerado relevante pelas autoridades judiciais que investigaram Silva Carvalho e a Ongoing. Estarão também elas infectadas pelo vírus que leva a desvalorizar intromissões na vida privada? Por exemplo: para que queria Silva Carvalho saber em que colégio estudam os filhos de Ricardo Costa? É de imaginar o pior...

É também bom ter memória no que respeita à Ongoing, uma empresa que agora todos colocam no pelourinho, incluindo muitos dos que a defenderam quando ela participou na vergonhosa tentativa de compra e controlo da TVI. Como disse recentemente Francisco Balsemão, num debate de jornalistas em que também participei, "a (triste) realidade é que quem tenha muitos milhões (ou, melhor ainda, consiga que a banca lhe empreste muitos milhões, mesmo que não faça tenções de os pagar) pode gastar alguns em empresas de comunicação social que nunca ganharão dinheiro, mas cujos media serão úteis ao cumprimento dos objectivos dos milionários proprietários". É difícil não ver aqui uma referência directa à Ongoing, e referência certeira. 

Este mesmo jornal publicou, há tempos, uma excelente investigação de Cristina Ferreira sobre a teia de interesses e ligações daquela empresa onde ficava muito claro como ela tinha sido instrumental e servil (até uma zanga no Verão de 2010) relativamente ao anterior poder político. É isto alguma novidade? Não devia ser. Eu próprio denunciei essas ligações e essas práticas durante uma audição na Comissão de Ética da Assembleia no início de 2010. Muitos dos "indignados" de hoje também se indignaram nessa altura, mas comigo. É esta memória que nos permite estar alerta, pois empresas deste tipo não agem por ideologia, actuam antes em função dos seus interesses e do poder do momento. Há mais do género no sector da comunicação social, todos o sabemos. Tal como sabemos que estamos a pagar caro a condescendência com que encarámos as manobras de 2009, como já sublinhou Pedro Lomba neste jornal.

Em 2007 e 2008 a Sábado revelara as relações entre algumas lojas maçónicas, agentes dos serviços de informações e políticos. Ninguém ligou. Não era conveniente na altura. Hoje sabemos como muitas das relações que nos fazem desconfiar da hombridade dos serviços de informações também passaram pelas reuniões do avental. De novo o assunto parece estar esquecido. Só que não podemos ver o retrato todo sem lhe acrescentar este lado "discreto", porventura sombrio. 

Quanto a tudo o mais, recordo apenas que há ambientes que se frequentam e outros a que, uma vez conhecidos, não se volta. O discernimento dos homens públicos também passa por aí. Não é, sr. ministro?

P.S.: Sempre fui frontalmente contra qualquer tentativa de resolver nos tribunais o que pertence à política. Não posso, no entanto, deixar de me interrogar sobre se o conteúdo do relatório do Tribunal de Contas sobre as PPP rodoviárias não deveria ter consequências judiciais. Uma coisa é ter optado por um modelo errado. Ou ter multiplicado, "por ideologia", como gostava de dizer no Parlamento José Sócrates, a construção de infra-estruturas hoje às moscas. Ou mesmo ter feito maus negócios, aceitando remunerar accionistas das novas PPP por valores "claramente superiores aos praticados no mercado". Tudo isto caberá, por mais que nos custe a engolir e a pagar, no domínio das opções políticas e das circunstâncias de um governo. Mas já é totalmente diferente esconder do Tribunal de Contas contratos adicionais, com um impacto financeiro de 705 milhões de euros, única forma de conseguir um visto que antes fora recusado. Estas manobras têm rosto. O mais evidente é o de Paulo Campos, actual deputado do PS e ex-secretário de Estado do sector. Mas é o único, como sabemos. 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António