O mistério inglês e a corrente de ouro

Público 2012-06-04 João Carlos Espada


Mil embarcações eram esperadas ontem para descer o Tamisa, em celebração do Jubileu de diamante da rainha Isabel II. Um milhão de espectadores era a estimativa às 8 horas da manhã de domingo. A essa hora, debaixo de uma chuva miudinha, milhares de pessoas começavam já a garantir os seus lugares nas margens do rio, para um espectáculo que iria começar seis horas mais tarde. Eram de todas as idades, vinham de todos os pontos do país e até de além-mar, ostentavam com orgulho todo o tipo de adereços, com destaque para a bandeira britânica e fotos de Isabel II gravadas em guardas-chuvas e impermeáveis.

Dificilmente poderia ser encontrado um melhor exemplo do que Karl Popper me descreveu, em 1987, como "o mistério inglês". Tinha acabado de conhecer pessoalmente o autor de A Sociedade Aberta e os seus inimigos, cuja leitura uns anos antes mudara literalmente a minha visão do mundo. E ele agora insistia que eu devia ir estudar e viver em Inglaterra, de forma a poder conhecer de perto "o mistério inglês". Perante a minha surpresa, o velho filósofo anglo-austríaco falou-me com gravidade: "É difícil explicar, e por isso é tão importante vivê-lo. Nós devemos à Inglaterra a sobrevivência da democracia no século XX. Mas, antes disso, já lhe devíamos a mera plausibilidade da hipótese democrática. E ao império inglês devemos a expansão dessa plausibilidade pelos quatro cantos do mundo - aquilo que Winston Churchill chamou de "povos de língua inglesa". É um mistério, podemos chamar-lhe "o mistério inglês"."

Contrariamente aos meus planos iniciais, fui de facto estudar para Inglaterra. E, nos 25 anos entretanto decorridos após aquela primeira conversa com Karl Popper, nunca me esqueci do "mistério inglês". Das "descobertas" entretanto ocorridas, procurei dar conta num livrinho publicado pela Aletheia em 2010, precisamente sob o título O mistério inglês e a corrente de ouro - cujo ponto de partida reside justamente na conversa com Popper em 1987.

Esse mistério inglês não era, afinal, apenas do conhecimento de Popper. Desde, pelo menos, o século XVIII, apaixonara os amantes da liberdade no continente europeu. Até à Revolução Francesa de 1789 - essa "doença infecciosa", como lhe chamou Edmund Burke - o mistério inglês exprimia-se na seguinte interrogação: "Por que é que a Inglaterra tem um regime monárquico, liberal e ordeiro, enquanto no continente existem sobretudo monarquias autoritárias e absolutas?" Depois de 1789, a mesma pergunta sofreu uma metamorfose: "Por que é que a Inglaterra mantém um regime monárquico, liberal e ordeiro, enquanto na Europa temos agora a paixão pelo despotismo popular e republicano, no lugar antes ocupado pela paixão pelo absolutismo real?"

Estas interrogações dominaram a reflexão política de grandes pensadores continentais. Em França, por exemplo, elas estiveram no centro das obras de Montesquieu, Tocqueville, Élie Halévy e Raymond Aron. Talvez tenha sido Halévy quem melhor captou, em breves palavras, o núcleo central desse mistério inglês, ao qual chamou "milagre da Inglaterra moderna": "O verdadeiro milagre da Inglaterra moderna não está em ter sido poupada à revolução, mas em ter assimilado tantas revoluções - industrial, económica, social, política, cultural - sem nunca recorrer à Revolução."

Uma das melhores ilustrações desta versatilidade não revolucionária do "mistério inglês" reside numa passagem de Winston Churchill sobre a filosofia política de seu pai, lorde (Randolph) Churchill, um destacado parlamentar conservador. Disse Churchill sobre seu pai:

"Lorde (Randolph) Churchill não via razão para que as velhas glórias da Igreja e do Estado, do rei e do país, não pudessem ser reconciliadas com a democracia moderna; ou por que razão as massas do povo trabalhador não pudessem tornar-se os maiores defensores destas antigas instituições, através das quais tinham adquirido as suas liberdades e o seu progresso. É esta união entre o passado e o presente, entre a tradição e o progresso, esta corrente de ouro (golden chain), nunca até agora quebrada, porque nenhuma pressão indevida foi exercida sobre ela, que tem constituído o mérito peculiar e a qualidade soberana da vida nacional inglesa."

Ontem, ao longo do rio Tamisa, reapareceu a "corrente de ouro" de que falava Winston Churchill, essa misteriosa "união entre o passado e o presente, entre a tradição e o progresso". Sem essa "corrente de ouro", não será possível sequer começar a entender o "mistério inglês" que apaixonava Karl Popper. E foi esse mistério inglês que permitiu a Inglaterra resistir a Hitler, inicialmente sozinha, e ser a primeira a denunciar a "cortina de ferro" soviética.

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