Dos africanistas aos europeístas
PÚBLICO, 04.06.2009, Helena Matos
O europeísta, tal como o africanista, acredita que tudo é mais fascinante que a pequenez de Portugal
"Nós, europeus", "Mais Europa", "Europa connosco", "O partido da Europa" etc... etc..., agora repetidos à exaustão como um mantra, não são mais do que a actualização de tantos outros slogans sobre Angola ou a Argélia. Basta tirar Europa e colocar uma qualquer ex-colónia e encontramo-nos diante dos slogans que mobilizaram, a favor e contra, as gerações passadas. Em Portugal o célebre "Do Minho a Timor" deu lugar a uma espécie "Do Algarve à Finlândia".
Integrar Portugal num espaço que o liberte da sua circunstância geográfica tem sido uma constante da política portuguesa ao longo dos séculos e dos regimes. Assim o europeísta sucedeu naturalmente ao africanista no imaginário nacional como sinónimo de alguém adepto do progresso e com visão de futuro. O europeísta, tal como o africanista, acredita que nada poderá abalar o seu mundo, pois tanto num caso como noutro tudo é mais fascinante que a pequenez de Portugal. E o mundo dos europeístas, tal como o dos africanistas, parece não ter limites, pois se os primeiros concebiam África como imensa, os segundos não conseguem sequer definir as fronteiras da própria Europa.
Portugal é actualmente governado por uma geração que se independentizou de África e que transferiu para a Europa o "rapidamente e em força" salazarista. Não estamos de modo algum isolados nesse redireccionar. Os países fundadores da CEE, perante a evidência de que se arriscavam a perder a pouca influência que lhes restava no mundo pós-II Guerra, perceberam aquilo que os romanos já tinham constatado muito tempo antes: não se pode subestimar a potência que conseguir controlar os territórios que vão do Atlântico ao Bósforo, ou, quem sabe, até um pouco mais à frente. Mas para isso há que estar unido e devidamente autodesenvencilhado "dos fardos e das culpas do homem branco". Neste regresso a casa dos países fundadores da CEE vemos transferir-se para a criação duma identidade europeia, dum povo europeu e duma História europeia o mesmo entusiasmo e o mesmo argumentário que num passado muito recente as elites desses mesmos países tinham usado para os seus expansionismos ou para justificar presenças em África ou na Ásia. Nessa narrativa legitimadora nem sequer lhes falta uma versão actualizada daquilo que foi para os Descobrimentos o reino do Prestes João. Assim, quem folhear os manuais pelos quais as crianças portuguesas (e não só) actualmente estudam o passado, constata que até a queda do império romano e as invasões bárbaras são mais ou menos apresentadas como uma cimeira do directório, só que em vez da Alemanha e da Itália quem compareceu nesse encontro amistável e premonitório da actual UE foram os germanos, os vândalos e os alanos que acordaram facilmente umas questões fronteiriças com os romanos.
Perturbantemente parece que, para lá da propaganda, não se aprendeu nada com o passado. Esta geração de europeístas, tal como a dos africanistas, está de tal forma inebriada com a vastidão do seu mundo, a sua arquitectura institucional e a dimensão do muito que podem fazer que esquecem que uma outra geração lhes pode fazer exactamente o mesmo que eles fizeram a quem os precedeu, ou seja, fazer desmoronar duma penada, como um castelo de areia, tudo aquilo até aí tido como inquestionável. Tão inquestionável que nunca aceitou discutir-se fora de rituais de legitimação devidamente encenados. As trapalhadas com o referendo ao Tratado de Lisboa e a sobranceria com que se trata o povo de cada vez que este não responde como os europeístas entendem estão ao nível dos dogmas que alimentavam, em Portugal, a retórica ultramarina.
As gerações mudam menos do que parece e certamente mudam mais facilmente de objectivos do que de hábitos. Apesar de a geração que agora está no poder em Portugal ter redefinido, como nenhuma outra o fizera anteriormente, as fronteiras do país e assistido ao fim da URSS, do Pacto de Varsóvia e do Comecon, a verdade é que, tal como aquela que a precedeu, age como se o mundo fosse imutável. E como se o povo não fosse mais do que um figurante nos seus desígnios. A construção europeia não é o fim da História como os europeístas parecem pensar, mas como ainda é do mais acertado que nos aconteceu enquanto país convirá que se trate da UE como aquilo que ela é: uma opção, não uma fatalidade. Infelizmente foi como uma fatalidade que se tratou nesta campanha e muito simbolicamente, para compensar a discussão que de facto não há sobre a Europa, transformam-se as eleições para o PE numa antecipação das legislativas onde os partidos somam vitórias e derrotas nacionais e a abstenção fica por conta da Europa.
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O caso conta-se em poucas linhas até porque a notícia era breve: numa escola da Azambuja, um aluno com deficiências motoras e cognitivas tem uma hora lectiva todos os dias com os colegas da turma na qual foi colocado. Tem ainda hora e meia de acompanhamento especial. O restante tempo passa-o sozinho, numa sala, na companhia de uma auxiliar. A mãe contratou uma advogada e denuncia: "Quando o meu filho faz barulho, a professora manda-o para a auxiliar de educação, porque diz que não se consegue concentrar nem ensinar os outros meninos." A associação de pais, que apoia a decisão da professora da turma, esclarece: "A escola não tem professores de apoio suficientes. São mais de 900 alunos, cerca de 40 precisam de apoio e pelo menos três precisam de um ensino especial a tempo inteiro. Só existem duas professoras de apoio na escola e esta foi a solução que se encontrou para resolver a situação dentro do que era possível." A escola não diz nada. A Inspecção-Geral da Educação anuncia que o assunto "vai ser alvo de atenção por estes serviços". Provavelmente todos fazem o que podem, mas não necessariamente o que devem - a escola afecta uma empregada para tomar conta de uma única criança; a professora ora ensina a turma, ora manda embora o aluno em questão; a mãe queixa-se da professora; a associação de pais queixa-se da falta de apoios e a advogada não se sabe o que fez ou faz, mas certamente vai processar alguém. Em tudo isto há um desacerto evidente.
Uma das decisões mais questionáveis da actual equipa do Ministério da Educação prendeu-se com a decisão de deixar de financiar os colégios de ensino especial. Essa decisão, como não podia deixar de ser, chegou devidamente revestida do anúncio dum admirável mundo novo em que "as crianças e jovens com necessidades educativas especiais de carácter permanente" têm o direito "a frequentar o jardim-de-infância ou a escola nos mesmos termos das restantes crianças", bem como o "direito ao reconhecimento da sua singularidade e à oferta de respostas educativas adequadas". Na prática o direito "a frequentar o jardim-de-infância ou a escola nos mesmos termos das restantes crianças" pode tornar-se numa experiência péssima para a criança que se pretendia ajudar.
Sem de modo algum pretender referir-me ao caso concreto desta criança, temos de admitir que há crianças com deficiências que muito beneficiam quando são integradas no ensino regular e outras para quem essa opção ainda acentua mais os seus problemas, acabando, por exemplo, isoladas numa sala. Por outro lado, é preciso que se entenda que no dia-a-dia duma escola a linguagem poética da lei sobre o "direito ao reconhecimento da sua singularidade e à oferta de respostas educativas adequadas" duma criança com necessidades especiais implica mais funcionários, mais técnicos especializados e rotinas sedimentadas. Tudo coisas que, à semelhança do bom senso, têm escasseado. Os filhos dos outros não podem ser cobaias das ideologias e dos proselitismos. Seria muito bom que nestas matérias da educação, seja ela especial ou não, se legislasse menos e se adoptasse como princípio que se deve tratar os filhos dos outros como nós gostaríamos que tratassem os nossos.
Obs. Como estamos quase a chegar à época de exames alguém no Governo ou na oposição sabe em que pára a reforma do ensino do Português? Existem famílias e alunos que muito gostariam de saber se a TLEBS ainda está ou não em vigor.
O europeísta, tal como o africanista, acredita que tudo é mais fascinante que a pequenez de Portugal
"Nós, europeus", "Mais Europa", "Europa connosco", "O partido da Europa" etc... etc..., agora repetidos à exaustão como um mantra, não são mais do que a actualização de tantos outros slogans sobre Angola ou a Argélia. Basta tirar Europa e colocar uma qualquer ex-colónia e encontramo-nos diante dos slogans que mobilizaram, a favor e contra, as gerações passadas. Em Portugal o célebre "Do Minho a Timor" deu lugar a uma espécie "Do Algarve à Finlândia".
Integrar Portugal num espaço que o liberte da sua circunstância geográfica tem sido uma constante da política portuguesa ao longo dos séculos e dos regimes. Assim o europeísta sucedeu naturalmente ao africanista no imaginário nacional como sinónimo de alguém adepto do progresso e com visão de futuro. O europeísta, tal como o africanista, acredita que nada poderá abalar o seu mundo, pois tanto num caso como noutro tudo é mais fascinante que a pequenez de Portugal. E o mundo dos europeístas, tal como o dos africanistas, parece não ter limites, pois se os primeiros concebiam África como imensa, os segundos não conseguem sequer definir as fronteiras da própria Europa.
Portugal é actualmente governado por uma geração que se independentizou de África e que transferiu para a Europa o "rapidamente e em força" salazarista. Não estamos de modo algum isolados nesse redireccionar. Os países fundadores da CEE, perante a evidência de que se arriscavam a perder a pouca influência que lhes restava no mundo pós-II Guerra, perceberam aquilo que os romanos já tinham constatado muito tempo antes: não se pode subestimar a potência que conseguir controlar os territórios que vão do Atlântico ao Bósforo, ou, quem sabe, até um pouco mais à frente. Mas para isso há que estar unido e devidamente autodesenvencilhado "dos fardos e das culpas do homem branco". Neste regresso a casa dos países fundadores da CEE vemos transferir-se para a criação duma identidade europeia, dum povo europeu e duma História europeia o mesmo entusiasmo e o mesmo argumentário que num passado muito recente as elites desses mesmos países tinham usado para os seus expansionismos ou para justificar presenças em África ou na Ásia. Nessa narrativa legitimadora nem sequer lhes falta uma versão actualizada daquilo que foi para os Descobrimentos o reino do Prestes João. Assim, quem folhear os manuais pelos quais as crianças portuguesas (e não só) actualmente estudam o passado, constata que até a queda do império romano e as invasões bárbaras são mais ou menos apresentadas como uma cimeira do directório, só que em vez da Alemanha e da Itália quem compareceu nesse encontro amistável e premonitório da actual UE foram os germanos, os vândalos e os alanos que acordaram facilmente umas questões fronteiriças com os romanos.
Perturbantemente parece que, para lá da propaganda, não se aprendeu nada com o passado. Esta geração de europeístas, tal como a dos africanistas, está de tal forma inebriada com a vastidão do seu mundo, a sua arquitectura institucional e a dimensão do muito que podem fazer que esquecem que uma outra geração lhes pode fazer exactamente o mesmo que eles fizeram a quem os precedeu, ou seja, fazer desmoronar duma penada, como um castelo de areia, tudo aquilo até aí tido como inquestionável. Tão inquestionável que nunca aceitou discutir-se fora de rituais de legitimação devidamente encenados. As trapalhadas com o referendo ao Tratado de Lisboa e a sobranceria com que se trata o povo de cada vez que este não responde como os europeístas entendem estão ao nível dos dogmas que alimentavam, em Portugal, a retórica ultramarina.
As gerações mudam menos do que parece e certamente mudam mais facilmente de objectivos do que de hábitos. Apesar de a geração que agora está no poder em Portugal ter redefinido, como nenhuma outra o fizera anteriormente, as fronteiras do país e assistido ao fim da URSS, do Pacto de Varsóvia e do Comecon, a verdade é que, tal como aquela que a precedeu, age como se o mundo fosse imutável. E como se o povo não fosse mais do que um figurante nos seus desígnios. A construção europeia não é o fim da História como os europeístas parecem pensar, mas como ainda é do mais acertado que nos aconteceu enquanto país convirá que se trate da UE como aquilo que ela é: uma opção, não uma fatalidade. Infelizmente foi como uma fatalidade que se tratou nesta campanha e muito simbolicamente, para compensar a discussão que de facto não há sobre a Europa, transformam-se as eleições para o PE numa antecipação das legislativas onde os partidos somam vitórias e derrotas nacionais e a abstenção fica por conta da Europa.
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O caso conta-se em poucas linhas até porque a notícia era breve: numa escola da Azambuja, um aluno com deficiências motoras e cognitivas tem uma hora lectiva todos os dias com os colegas da turma na qual foi colocado. Tem ainda hora e meia de acompanhamento especial. O restante tempo passa-o sozinho, numa sala, na companhia de uma auxiliar. A mãe contratou uma advogada e denuncia: "Quando o meu filho faz barulho, a professora manda-o para a auxiliar de educação, porque diz que não se consegue concentrar nem ensinar os outros meninos." A associação de pais, que apoia a decisão da professora da turma, esclarece: "A escola não tem professores de apoio suficientes. São mais de 900 alunos, cerca de 40 precisam de apoio e pelo menos três precisam de um ensino especial a tempo inteiro. Só existem duas professoras de apoio na escola e esta foi a solução que se encontrou para resolver a situação dentro do que era possível." A escola não diz nada. A Inspecção-Geral da Educação anuncia que o assunto "vai ser alvo de atenção por estes serviços". Provavelmente todos fazem o que podem, mas não necessariamente o que devem - a escola afecta uma empregada para tomar conta de uma única criança; a professora ora ensina a turma, ora manda embora o aluno em questão; a mãe queixa-se da professora; a associação de pais queixa-se da falta de apoios e a advogada não se sabe o que fez ou faz, mas certamente vai processar alguém. Em tudo isto há um desacerto evidente.
Uma das decisões mais questionáveis da actual equipa do Ministério da Educação prendeu-se com a decisão de deixar de financiar os colégios de ensino especial. Essa decisão, como não podia deixar de ser, chegou devidamente revestida do anúncio dum admirável mundo novo em que "as crianças e jovens com necessidades educativas especiais de carácter permanente" têm o direito "a frequentar o jardim-de-infância ou a escola nos mesmos termos das restantes crianças", bem como o "direito ao reconhecimento da sua singularidade e à oferta de respostas educativas adequadas". Na prática o direito "a frequentar o jardim-de-infância ou a escola nos mesmos termos das restantes crianças" pode tornar-se numa experiência péssima para a criança que se pretendia ajudar.
Sem de modo algum pretender referir-me ao caso concreto desta criança, temos de admitir que há crianças com deficiências que muito beneficiam quando são integradas no ensino regular e outras para quem essa opção ainda acentua mais os seus problemas, acabando, por exemplo, isoladas numa sala. Por outro lado, é preciso que se entenda que no dia-a-dia duma escola a linguagem poética da lei sobre o "direito ao reconhecimento da sua singularidade e à oferta de respostas educativas adequadas" duma criança com necessidades especiais implica mais funcionários, mais técnicos especializados e rotinas sedimentadas. Tudo coisas que, à semelhança do bom senso, têm escasseado. Os filhos dos outros não podem ser cobaias das ideologias e dos proselitismos. Seria muito bom que nestas matérias da educação, seja ela especial ou não, se legislasse menos e se adoptasse como princípio que se deve tratar os filhos dos outros como nós gostaríamos que tratassem os nossos.
Obs. Como estamos quase a chegar à época de exames alguém no Governo ou na oposição sabe em que pára a reforma do ensino do Português? Existem famílias e alunos que muito gostariam de saber se a TLEBS ainda está ou não em vigor.
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