Fatal como o destino

PÚBLICO, 18.06.2009, Helena Matos

Era fatal como o destino que no Largo do Rato havia de se apresentar uma nova estratégia de imagem

1.De animal feroz a humano simpático quiçá bonacheirão? Não me cabe dar conselhos a José Sócrates e repito que espero que rapidamente deixe de ser líder do PS e primeiro-ministro de Portugal, mas como a tolice é sempre um espectáculo constrangedor a que temos obrigação moral de poupar os nossos semelhantes, sempre acrescento que esta inflexão súbita da imagem oficial do primeiro-ministro é mais do que meio caminho andado para não chegar onde quer. Pois o que transparece da última reunião da comissão política do PS, mais uma vez, é a opção pelas técnicas do marketing em detrimento da política.
Talvez José Sócrates seja apenas um rapaz da província, deslumbrado com o poder. Ora isso nada tem de errado e em boa verdade é isso que somos nós, os portugueses: provincianos, com medo de parecer mal e um bocadinho fingidores de nós mesmos, coisa umas vezes parola e outras errada, moralmente falando. Se assumirmos isso em vez de resolvermos fazer de conta que somos quem não somos, ganha-se muito mais em genuinidade do que aquilo que se perde em suposta patine. Mas era fatal como o destino que no Largo do Rato havia de se apresentar uma nova estratégia de imagem, como o coelho que o mágico tira da cartola e vai dar não palmas mas votos nas próximas eleições. O equivalente disto são aqueles jornais em perda de leitores que acham que uma nova imagem gráfica lhes resolverá os problemas. Como se sabe, não resolve, mas, perante a perda de mais leitores, voltarão a fazer um novo projecto gráfico. Na política, esta concepção design dos conteúdos leva a transformar os líderes nuns clones dos participantes nos programas televisivos de mudança de visual.
Logo seria mesmo importante que José Sócrates deixasse de querer ser isto ou aquilo, consoante lhe dizem o que está a dar, e fosse apenas quem é. Dir-lhe-ão que isso não chega. Não creio. Quem sabe se não teríamos uma agradável surpresa? Pois mesmo que fosse para discordar, temos de convir que discordar daquilo que alguém pensa é sempre muito mais interessante do que discordar daquilo que alguém acha que deve pensar.

2.A indiferença sobre a vida nas cadeias. A fuga de cinco presos da prisão-hospital de Caxias levou a que, por momentos, um pouco da nossa atenção fosse desviada para o que acontece nas cadeias. A última vez que tal acontecera foi graças ao bastonário da Ordem dos Advogados que considerou "lamentável" estar prevista na lista dos deveres dos reclusos a "participação na actividade de limpeza das prisões".
O universo das prisões, e também das instituições para menores, os chamados "centros educativos", está transformado numa espécie de não-lugar: não compreendendo as interpretações da legislação penal, os portugueses esperam que os presos se mantenham presos pelo maior tempo possível e, não vá o politicamente correcto tecê-las e trazê-los cá para fora antes do tempo, manifestam um profundo desinteresse pelo que acontece aos detidos. Assim, basta o bastonário da Ordem dos Advogados dizer que participar na limpeza das cadeias é coisa do Estado Novo para que já ninguém queira falar sobre o assunto. Desde que estejam fechadinhos, tudo bem. O reverso desta hipocrisia é aceitar-se também em silêncio que os presos se violem, agridam ou matem entre si. Creio que, se a classe média temesse que os seus filhos fossem presos, não se aceitaria, quase como se estivesse perante uma fatalidade folclórica, aquilo a que vulgarmente se chama "código de honra das cadeias" e onde eu não vejo mais do que violências exercidas por uns presos sobre outros, perante a complacência de todos nós.
Não fosse esta fuga de Caxias e provavelmente nunca ouviríamos falar de Hugo Costa e Carlos Silva. Estes dois homens não fugiram de Caxias, nem fugirão aliás de lado algum pela prosaica razão de que estão mortos. Foram assassinados há três anos, quando se encontravam presos na cadeia do Linhó. Quem os matou foi um outro recluso, Bruno Gaspar, um dos homens que agora tentou fugir de Caxias. Quando se percebem os contornos desses homicídios, fica-se, em primeiro lugar, sem entender as regras que vigoram nas cadeias e, em segundo e último, cruzando os dedos para que nunca na vida nos cruzemos com Bruno Gaspar, também conhecido por "Vampiro do Linhó," desde esses dois homicídios. Mas, agora que o "Vampiro do Linhó" está de novo preso em Caxias, a opinião pública descansa tão descansadamente que prefere nem se interrogar sobre se os factos ocorridos no Linhó há três anos não se poderão repetir de novo, agora em Caxias. Desde que não fuja, está tudo bem!
A falta de pessoal nas cadeias, reiteradamente denunciada pelos sindicatos do sector, explicará algumas coisas. Mas está longe de explicar tudo. Ao desinteresse da opinião pública por aquilo que acontece nas cadeias corresponde uma opacidade apenas quebrada pelo momentâneo sobressalto gerado pelas fugas de presos. Mas, se repararmos, há sinais muito pouco tranquilizadores vindos desse mundo. E não são apenas ou sobretudo as tentativas de fuga. Por exemplo, como é que se consegue explicar que nenhum recluso em nenhuma cadeia de Portugal tenha aderido ao programa de troca de seringas? Não estou a dizer que o programa era bom ou mau, estou apenas a manifestar mais uma vez a minha estranheza por este valor: 100 por cento. Que cumplicidades e pressões estão subjacentes a isto? E como entender o silêncio do Instituto da Droga e da Toxicodependência perante o falhanço total dum programa que anunciara como estratégico? Igual pacto de desinteresse da opinião pública e silêncio oficial se abateu sobre os incidentes nos centros de reinserção para jovens. E pode até acontecer, como no caso dos incidentes do Centro Educativo da Bela-Vista, que a PSP, chamada a intervir, e a Direcção-Geral da Reinserção Social, que tutela esses estabelecimentos, apresentem versões contraditórias dos factos. A violência nas cadeias não é nem pode ser fatal como o destino. Já agora, e em resposta ao bastonário da Ordem dos Advogados, o problema não está em os presos limparem as cadeias ou fazerem outros trabalhos. Tudo isso faz parte da vida na qual se devem reinserir. O que não devia fazer parte da vida é a lei do mais forte que parece vigorar em algumas prisões.

3.Os olhos castanhos. Um dos problemas do jornalismo de causas é ver o mundo, no espaço que vai de Marrocos ao Irão, pelos olhos castanhos dumas protagonistas rapidamente transformadas numa espécie de vox populi. Os olhos castanhos, mais os lenços pela cabeça, a par do dramatismo dos acontecimentos em que estas mulheres estão envolvidas devem acordar nos jornalistas ocidentais uma memória latente de cassandras e medeias e lá as temos, às mulheres de olhos castanhos, mitológicas portadoras da verdade, da Faixa de Gaza ao Irão. Do Iraque à Cisjordânia.
A recente contestação ao resultado destas eleições no Irão chega-nos personificada em Anousheh. Anousheh é uma designer cuja história foi contada por Borzou Daragahi no Los Angeles Times e no PÚBLICO. Mas não só. Se passarmos para a imprensa francesa, encontramos também aí a mesma Anousheh, também relatada como original e exclusiva, desta vez por Delphine Minoui, no Le Figaro. E tal como no Los Angeles Times e no PÚBLICO, a Anousheh, na sua versão francesa, vai sempre correndo com os seus olhos castanhos, procurando o irmão que tal como ela está nas manifestações contra Ahmadinejad e, pormenor obviamente muito mal contado em todas estas reportagens, entregando invariavelmente a uns desconhecidos o seu saco onde tinha a máquina fotográfica, carteira e telemóveis. Presumo que pelos jornais desse mundo fora Anousheh continuará a desaparecer na noite, com os seus olhos castanhos, enfrentando "milicianos barrigudos", encontrando o irmão e, claro, recebendo uma chamada dos desconhecidos que, no final dos textos, já não se percebe se são desconhecidos, se os jornalistas autores dos artigos em questão, que lhe pretendem entregar o saco.
Sendo óbvio que a Anoushed iraniana me merece o maior apoio - esta ou a outra Anoushed que emigrou criança para os EUA e em 2006 se tornou não só na primeira mulher muçulmana a viajar para o espaço, como a primeira que pagou essa mesma viagem, detalhe que sabe sempre bem frisar nestes assuntos islâmicos -, não me parece menos óbvio que mulheres de olhos castanhos dizendo aquilo que os jornalistas ocidentais querem ouvir não têm faltado em todos os conflitos desta zona. Não é que não me alegre ao ouvir o que diz Anoushed, ou ao ver as mulheres das manifestações batendo nos guardiões e mostrando um cabelo bem mais solto que o de algumas jornalistas ocidentais, sempre tão ansiosas por fazerem prova real do seu multiculturalismo que, mal aterram no Irão, acabam a ser mais guardiãs que os guardiões e cobrem-se meticulosamente, mas para percebermos efectivamente o que está a acontecer no Irão temos de ouvir e ver também outros protagonistas.
Jornalista

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