Em nome da Europa que ali começou a nascer há 65 anos
PÚBLICO, 07.06.2009, José Manuel Fernandes
Sem o desembarque na Normandia dificilmente haveria hoje União Europeia. E foi lá que Obama pediu aos líderes que se inspirassem na coragem dos que morreram naquelas praias para terem a força necessária nestes tempos de crise
Barack Obama é o primeiro Presidente dos Estados Unidos que nasceu numa época em que a II Guerra Mundial era já uma memória relativamente distante. Mas o seu tio-avô, Charles Payne, fez parte daquela a que os americanos chamam "the greatest generation", a que lutou nas diferentes frentes do grande conflito. Ontem teve-o a seu lado na cerimónia em Colleville-sur-Mer, junto a uma das praias onde as tropas aliadas desembarcaram no Dia D, 6 de Junho de 1944.
Ao falar recordou Zane Schlemmer, um soldado da 82nd Airborne Division que foi lançado de pára-quedas atrás das linhas alemãs, originário do Haway, a ilha onde Obama passou a sua juventude. Lembrou também Anthony Ruggiero, do Army's Second Ranger Battalion, que passou três horas dentro de água antes de subir à falésia e ajudar a tomar um ninho de metralhadoras alemãs. E recordou ainda Jim Norene, da 502nd Parachute Infantry Regiment, que, apesar de doente, quis ir do Oregon às comemorações do 65º aniversário do desembarque, mas morreu na noite de sexta para sábado não sem antes ter regressado, pela última vez, à praia Omaha, onde se travaram os combates mais duros. E talvez ainda tenha tido tempo e força para visitar o cemitério onde descansam os corpos de 9387 soldados americanos que morreram no desembarque e nos dias que se lhes seguiram.
"Esta é a história da Normandia, mas também a história da América", sublinhou Obama, que discursou numa cerimónia onde também estiveram presentes os primeiros-ministros do Canadá e do Reino Unido e o Presidente francês. Porquê? "Quando temos de enfrentar os desafios e as batalhas dos dias que vivemos e chegam os momentos difíceis para os quais nascemos, não podemos senão ir buscar força aos que, nestes momentos decisivos da história, os melhores de nós foram de alguma forma capazes de enfrentar os seus medos e lançar-se ao assalto de uma praia num terreno que não perdoava a menor hesitação."
Na verdade, naquelas praias tomadas de assalto em condições terríveis, "a bravura e o altruísmo de um punhado de homens foi capaz de mudar o curso da história de todo um século". Exacto: ali, como noutros teatros de guerra na Europa, jogou-se o destino do Velho Continente.
O exército nazi já não era, à época, a implacável máquina de guerra que surpreendera o mundo quatro anos antes. A leste, na frente russa, a sorte das armas já se tinha virado contra as divisões de Hitler que, depois da Batalha de Kursk, em Julho e Agosto de 1943, passaram à defensiva. A sul, alguns meses antes, os alemães haviam demonstrado uma extraordinária capacidade de resistência ao avanço dos exércitos aliados em lugares como Monte Cassino. Sem a ofensiva lançada a partir das praias da Normandia é muito provável que os alemães acabassem na mesma por perder a guerra, mas ninguém sabe até onde, no dia seguinte, se estenderia o novo império soviético, se em Paris não se falaria ainda hoje russo. Porém, graças à ofensiva lançada por americanos, britânicos e canadianos, a Cortina de Ferro cairia na Europa muito mais a leste do que se chegou a temer.
Depois do pesadelo, os que ficaram a ocidente do novo muro foram construindo uma comunidade que, passo a passo, tropeção a tropeção, mais depressa ou mais devagar, foi erguendo aquilo que é hoje a União Europeia. Começou com seis países, integra hoje 27. Antes era fácil de governar e tinha poucos poderes, hoje as competências que foi chamando a si, derivadas de uma integração cada vez maior, tornaram-se num pesadelo onde é difícil perceber quem manda e quando manda.
Como pólo de desenvolvimento inclusivo e como exemplo de convivência democrática, com decisões partilhadas por líderes que têm de prestar contas aos seus eleitores, a União Europeia é uma construção única que se ergueu e manteve de pé quase por milagre. E que, hoje, vai ter de ultrapassar mais uma prova: a de saber até que ponto o seu destino interessa aos cidadãos para que estes acorram em números razoáveis às urnas. Infelizmente já se sabe que não deverão fazê-lo e isso não se resolve colocando o pé no acelerador e seguindo em frente com uma legitimidade parlamentar renovada.
As democracias são construções frágeis, e quando as vantagens das democracias são postas à prova em tempos de crise e de crescimento dos populismos, os responsáveis políticos têm de perceber algo que ainda não entenderam: o problema da Europa não é a ausência de um número de telefónico único para onde o Presidente dos Estados Unidos possa ligar em tempos de crise, sobretudo este Presidente, que já disse que tudo era mais fácil quando bastava a Roosevelt encontrar-se com Churchill, mas que esses tempos não voltarão. O problema da Europa é a inexistência de uma opinião pública europeia, o mínimo dos mínimos antes de sequer se sonhar com um "patriotismo constitucional" capaz de unir os europeus sob referências comuns e levá-los a sentirem problemas como os hoje vividos na Letónia, país onde se refere cortes de salários na administração pública na casa dos 50 por cento sem que isso pareça incomodar nenhum dos restantes 26 parceiros.
Os que morreram na praia de Omaha, a maioria dos quais nem europeus eram, abriram caminho para o que hoje é a União Europeia. A sua memória não permite que deixemos destruir o que levou tanto tempo a erguer e que pode desmoronar-se pelo mesmo tipo de razões que levaram aos desastres da primeira metade do século XX na Europa: os egoísmos nacionais.
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