Um filme contra a máfia do cinismo
Henrique Raposo (www.expresso.pt)
Expresso on-line Sexta feira, 11 de novembro de 2011
O que é um filme de culto? Talvez seja aquele filme que nos obriga a passar pelo seguinte processo emotivo: na primeira vez, não gostamos; na segunda vez, conseguimos ver sem franzir o olho; na terceira vez, gostamos; na quarta vez, ajoelhamo-nos perante a nossa estupidez inicial, vergamo-nos perante uma espécie de revelação. A minha relação com "Os Filhos do Homem" seguiu, ao pormenor, esta mapa emotivo. Na primeira vez, não encaixei o filme, apesar da narrativa ilustrar um território que me deixa sempre de pernas bambas: o cenário apocalíptico. Mas, agora, depois de o ver várias vezes (obrigado, AXN), "Os Filhos do Homem" transformou-se numa obsessão, num culto.
Estamos situados, como já disse, num território apocalíptico. Ainda não é pós-apocalíptico como em "Eu sou a Lenda", por exemplo. Estamos mesmo no apocalipse, dentro do apocalipse, num apocalipse em câmara lenta, para ser exacto. Num futuro mais ou menos distante (2027), a humanidade perdeu a capacidade para se reproduzir. Não nascem bebés. Não há mulheres grávidas. A gravidez subiu, ou melhor, desceu à condição de milagre. O ser humano mais jovem do mundo tem 18 anos, e morre logo na abertura do filme. É neste contexto que Alfonso Cuarón recria uma Inglaterra dominada por um poder autoritário, uma Inglaterra negra, sem esperança, uma Inglaterra onde impera o cinismo, um cinismo bem representado por Theo (Clive Owen), a personagem principal. E o encanto do filme está - precisamente - na trajectória moral de Theo, no escape que ele encontra contra este cinismo.
A resistência, liderada por Julian (Julianne Moore), encontra um milagre em forma de gente, isto é, encontra uma rapariga grávida, a primeira em décadas. E, por portas travessas, Theo acaba por ser o protector desta rapariga (Kee). No meio do caos, no meio da guerra civil entre governo e a resistência, Theo é o único preocupado com aquilo que realmente interessa a esta humanidade perdida: conduzir Kee e o seu bebé crístico até ao "Human Project", um santuário de cientistas situado nos Açores, a última esperança da humanidade. Theo não tem a certeza sobre a existência deste santuário. Aliás, ninguém tem. Mas, mesmo nesta incerteza, Theo leva Kee até ao ponto de encontro, e até à sua redenção. Como diz um amigo, "Os Filhos do Homem" é um objecto religioso. Não, não é sub-religioso, ou religioso a brincar. Não, não tem sapos a cair. É mesmo religioso. "Os Filhos do Homem" é a vitória da crença sobre o cinismo, é a vitória dos melhores anjos da nossa natureza.
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