E agora?

Público 2011-11-03 Helena Matos
A Grécia pôs a Europa de novo nos cornos do touro e em França a redacção do jornal satírico Charlie Hebdo foi incendiada

A Grécia afastou as chefias militares e pôs a Europa de novo nos cornos do touro, agora por causa de um referendo ao programa de ajuda externa. Em França, a redacção do jornal satírico Charlie Hebdo foi incendiada por ter feito um número intitulado "Charia Hebdo". Em Portugal a rumorologia assegura que José Sócrates move as suas influências para que o PS chumbe o Orçamento e notícias chegadas da República Popular da China dão conta de que a História nunca se repete mas também nunca pára.
Pois é, eu devia ter feito como os comentadores que, uma vez informados de que a sua colaboração vai findar, terminam com ela logo no texto seguinte. Mas eu não. Achei bonito e original continuar e preparar um texto sobre o que mudou nestes dez anos em que colaborei com o PÚBLICO. E agora faço o quê? Despeço-me com amizade e analiso detalhadamente como era o país há dez anos ou escrevo sobre a Grécia de Papandreou e digo que este referendo devia ter acontecido logo quando se colocou a hipótese da ajuda externa? Ou, melhor ainda, declaro que esta crise grega se insere numa linha que vai da mitologia até essas dinastias de armadores gregos que em pleno século XX viveram, amaram e morreram como se fossem personagens de uma tragédia? Quem sabe os oito mil caracteres chegavam para evocar essa rivalidade quase telúrica entre Onassis e Niarchos, como também para ilustrar a presente crise grega através da história da Olympic Airways, a companhia de aviação criada por Alexandre - que outro nome podia ter o filho de Onassis, sobrinho de Niarchos e neto de Livianos? - e que após a morte precoce e trágica do seu fundador se tornou propriedade do Estado grego, que a foi mantendo graças a subsídios, apoios e outras formas nem sempre claras de financiamento. E afirmaria que certamente há algo do destino desmesurado dos Átridas nesta Grécia que não quer ser o que é, que já não pode ser o que foi e que muito menos pode viver como quer, porque ninguém lhe sustenta tal querer. Mas a terminar concluiria que também há muito da manha de Ulisses nesta ameaça de golpe militar e no anúncio por Papandreou de um referendo para referendar o facto consumado da falência.
Oito mil caracteres são muitos caracteres (e um verdadeiro luxo nestes tempos em que se convencionou que os textos grandes são ilegíveis) e dariam certamente para isto, tivesse eu talento para tanto. Mas o que fazer ao Charlie Hebdo, ou, melhor escrevendo, ao "Charia Hebdo"? Esqueço-o? Ao longo destes anos nunca tive a menor paciência para com os jornalistas, escritores, dramaturgos e demais profissionais da contestação cuja irreverência perante as democracias ocidentais em geral e o cristianismo em particular é inversamente proporcional ao silêncio que mostram perante o islão. E agora que a dita "primavera árabe" provocou arrebatamentos místicos em grande parte das redacções da Europa, este ataque ao Charlie Hebdo, simplesmente porque resolveu fazer humor com Maomé, a par das notícias sobre o crescimento da intolerância religiosa no Egipto, sem esquecer que as primeiras decisões do novo poder da Líbia se prendem com a instauração da poligamia, mais que justificam que trate este assunto. Contudo, já vou em três mil caracteres e nem de longe nem de perto consigo dar conta da minha perplexidade sobre a imensa tolerância que na Europa se mostra para com aqueles que apostam na extrema violência. Como são os fundamentalistas islâmicos em França ou os membros da ETA em Espanha. Estes últimos, após anos e anos em que assanharam a matar, extorquir e torturar os seus concidadãos, acham que agora lhes basta dizer que renunciam à violência para que todos se comportem como se nada tivesse acontecido e eles, os assassinos, surjam reciclados em activistas políticos. Ainda por cima com um discurso "social".
Na verdade, se não consegui em dez anos explicar os meus argumentos nesta matéria, tenho de admitir que também não será neste texto que o vou fazer. Ora tendo eu desistido da evocação do que era o país em que eu comecei a colaborar com o PÚBLICO - não vale a pena ou talvez valha, mas a mim não me apetece regressar a esse tempo em que, mais do que nos acharmos ricos, adiámos sempre todas as possibilidades de reformar o país sem ser pelo mecanismo do costume: imposição externa -, tenho ainda que voltar a José Sócrates, que, segundo os jornais, agora telefonará a deputados do PS procurando condicionar o seu voto na votação do futuro Orçamento. Quando comecei a escrever, era Guterres primeiro-ministro. Depois dele outros homens ocuparam esse cargo. Relendo o que escrevi é óbvio que nunca escrevi tanto sobre outro primeiro-ministro como sobre José Sócrates. E francamente espero bem que tal nunca mais venha a suceder, porque um país não pode viver capturado pelo seu primeiro-ministro. Durante anos Portugal viveu ao ritmo dos casos e das circunstâncias de José Sócrates, o líder que em 2005 teve não só uma maioria absoluta, mas também o apoio implícito de um país farto das prestações de Durão e Santana. Sócrates falhou e falhou sobretudo por sua culpa. Tenho a forte convicção de que Sócrates aspira a voltar à política activa e como é habitual nestes casos isso implica condicionar a presente liderança do seu partido. Mas na verdade o que conta não é o que Sócrates quer vir a ser, mas sim aquilo que o PS é ou quer vir a ser: se o PS votar contra o OE e sobretudo se começar a desfilar com a Inter na Avenida da Liberdade, na folclórica companhia dos indignados e do BE, ganha pouco mais além de muito ar para encher os egos inflamados do Largo do Rato. Essa é uma estratégia de derrotados e pode até ser uma boa estratégia, desde que o partido em causa não aspire a ser governo nos tempos mais próximos. É essa, por exemplo, a linha actual do candidato socialista em Espanha, mas convém que se tenha presente que o PSOE sabe que não ganha estas eleições, logo opta por radicalizar o discurso para roubar votos à extrema-esquerda e entregar ao PP uma Espanha com a rua revolta. O reverso desta miragem de mau gosto de um PS radicalizado à esquerda é a eterna tentação do bloco central, recorrentemente justificado pelo sentimento de urgência nacional. Trata-se de uma tentação funesta para o PS, que acabaria menorizado, e perigosa para o país, porque aquilo que precisamos é precisamente que os partidos democráticos apresentem propostas ideologicamente diversas. Há ou não uma resposta política no campo do socialismo democrático ao actual Governo PSD-CDS? Precisamos que haja.
É que um partido, sobretudo se for um grande partido, não é um comentador que vai falando ao sabor do acaso. Eu, por exemplo, escrevi sobre o que me apeteceu, como entendi e quando quis. O que convenhamos é um enorme privilégio. E agora aqui eu tinha aquela deixa quase perfeita para agradecer aos leitores, a quem me convidou, o José Manuel Fernandes, e a todos os trabalhadores deste jornal que nos bastidores permitem que um texto enviado às 22h esteja, menos de sete horas depois, revisto, composto, paginado, impresso e distribuído nas bancas. Mas sobretudo acho que devo agradecer a outros. A quem? Ao engenheiro Belmiro de Azevedo e à menina da caixa do Continente. Porquê? Porque sempre representaram para mim quem me pagava a colaboração no final do mês: o engenheiro Belmiro, porque enquanto accionista cobria os prejuízos do jornal, e a menina da caixa do Continente, porque, provavelmente desempenhando uma das tarefas mais cansativas no universo Sonae, gerava os tais lucros que permitiam manter o jornal. Dir-me-ão que não é exactamente assim, mas eu preciso de símbolos e estes dois não são certamente os menos adequados.
Por fim falta o comentário à notícia que vem da China e que não refere a disponibilidade daquele país para comprar ainda mais dívida dos países europeus ou para participar no Fundo de Estabilização Europeu. A notícia diz que os chineses ricos desejam sair da China e viver em países como a Austrália ou o Canadá, onde não receiem a poluição, os seus filhos sejam melhor educados e não temam ser expropriados. Ou seja, teremos de nos ir preparando para um abanão bem maior que o provocado pela insolvência da Grécia. A longa marcha para o segundo despertar da China pode já ter começado e isso, além de uma grande notícia, é algo que vai alimentar muito comentário. Como já ultrapassei os oito mil caracteres fico por aqui, mas ainda acrescento que esta talvez seja a notícia mais importante que comentei. Hoje e nestes dez anos. Ensaísta

Comentários

Francisco Melo disse…
Como disse:

«Ao longo destes anos nunca tive a menor paciência para com os jornalistas, escritores, dramaturgos e demais profissionais da contestação cuja irreverência perante as democracias ocidentais em geral e o cristianismo em particular é inversamente proporcional ao silêncio que mostram perante o islão.»

Quer dizer que eles vão perder a concorrência? Não vão ter mais quem os contrarie? Que perda para a liberdade de expressão de pensamento, a ponto de me perguntar se a liberdade de expressão de pensamento, por lá, está a ser honesta consigo mesma ou não gosta de ser contrariada.

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