Estaremos condenados à arrogância da ignorância?

Público 2011-11-25 José Manuel Fernandes
O que me chocou mais na história do vídeo dos estudantes ignorantes foi tentarem justificar o que não tem justificação
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A África é um país da América do Sul? Que disparate, ri-se o país em peso e sem piedade da rapariga da Casa dos Segredos. O tecto da Capela Sistina foi pintado por Miguel Arcanjo? Que ignomínia, protesta o rapaz apanhado em falso, para quem "o papel da revista Sábado foi puramente ignóbil", numa linha de argumentação que até cativou o humorista Bruno Nogueira.
Não duvido que, se andássemos de câmara de vídeo ao ombro e lista de perguntas afiadas pelas ruas, pelas salas de professores, pelos corredores da Assembleia ou por muitas redacções, faríamos com alguma facilidade mais alguns vídeos semelhantes ao que circulou toda a semana na Internet. Mas isso não me leva a desculpar a ignorância que nele se destapa: no total de 100 entrevistados, só cinco acertaram em todas as respostas; de resto, 44 não sabiam quem tinha pintado o tecto da Capela Sistina, 24 falharam o nome da chanceler da Alemanha, 30 não sabiam quem é o presidente da Comissão Europeia, 26 não indicaram qual o maior mamífero do mundo e 24 não disseram que Washington é capital dos Estados Unidos. Tudo isto numa amostra de estudantes universitários.
Inquietante, não? Não tão inquietante quanto o coro de desculpas, o rol de vozes que surgiram por todo o lado a criticar o vídeo. Os mesmos que se haviam rido da ignorância da auxiliar de saúde do concurso da TVI apareciam agora a lamentar a "humilhação" a que tinham submetido os bravos estudantes universitários, numa reacção classista tipicamente portuguesa. O rapaz do Miguel Arcanjo, para além de ameaçar com os tribunais, jurou no seu Facebook que se acha "uma pessoa culta" porque, além de assinante da Visão, no trajecto entre a escola e casa "lê os jornais gratuitos que consegue adquirir". Ainda bem que lê jornais, mesmo se apenas os gratuitos - mas será que isso chega para alguém se considerar "culto"? Não será preciso um pouco mais?
Há aqui qualquer coisa de errado que não deve passar apenas com um sorriso displicente.
Goste-se ou não, o vídeo da Sábado, incluindo o erro numa das perguntas (quando se confundiu símbolo químico com fórmula química da água), é revelador do estado das coisas. Sobretudo da desvalorização da cultura como parte integrante da formação dos indivíduos. É um mal presente na sociedade e no sistema de ensino.
Primeiro que tudo, porque há um segredo que ninguém confessa: não falta por aí quem acredite sinceramente que não tem utilidade nenhuma saber quem pintou a Mona Lisa ou quem escreveu O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Noutros tempos assumia-se que tais conhecimentos pouco adiantavam a quem cavava a terra - e por isso nesse passado dito remoto, como notou Isabel dos Guimarães Sá numa contribuição para a História da vida privada em Portugal, "a generalidade das crianças não era objecto de instrução literária: a principal aprendizagem era ainda a de saber viver de acordo com a sua condição social". Eram tristes tempos esses do século XVI ou XVII, mas a verdade é que se hoje se defende o contrário - e se olha para a educação como o principal motor do elevador social que permite que o destino não seja determinado pelas condições de nascença -, na prática nem sempre isso sucede.
Entre quem estuda parece muitas vezes vingar a ideia de que só vale a pena aprender o que se julga ser útil. Para quê, por exemplo, aprender a tabuada ou mesmo fazer contas de dividir se hoje até nos omnipresentes telemóveis há sempre uma máquina de calcular à mão? Para quê preocupar-se com as datas das batalhas ou com os nomes dos reis se isso está tudo na Wikipédia e não há nada que "googlando" não se descubra? Para quê ler livros se há resumos e PowerPoints? Para quê decorar um poema se existe o karaoke?
Sabemos hoje duas coisas sobre esta forma de pensar. Primeiro que, como notou George Steiner, "se negligenciarmos a memória, se não a mantivermos à maneira do atleta que exercita os seus músculos, ela definha", pelo que é lamentável que "a nossa escola seja de amnésia planificada". Depois que, e recorro desta vez a um marxista, Antonio Gramsci, se "antigamente os alunos alcançavam uma certa bagagem de factos concretos, agora já não há nenhuma bagagem para pôr em ordem", o que tem como consequência que "a escola nova, apresentada como democrática, na realidade está destinada a perpetuar as diferenças sociais".
A indiferença pela perpetuação das diferenças sociais é exactamente o que vemos no estilo chocarreiro como se comentou a concorrente da Casa dos Segredos - a sua fama efémera até a torna uma figura invejável - por contraponto à forma como Bruno Nogueira "recuperou" a honra dos universitários ignorantes. É a diferença entre classe média baixa e classe média remediada.
A educação, em casa ou na escola, deveria, como escreveu o filósofo liberal Michael Oakeshott, ser um "convite para se abstrair por algum tempo das pressões do momento e para ouvir a conversação em que o ser humano, desde sempre e para sempre, tem procurado compreender-se a si próprio". A educação não deve ser uma aprendizagem utilitária onde apenas substituímos a enxada ou a agulha de outros tempos pelo Magalhães ou pela aula prática dos dias que correm. É que uma educação assim, em casa ou na escola, fecha os horizontes em vez de os abrir.
O "eduquês" que o actual ministro da Educação, Nuno Crato, ajudou a desmontar é uma das manifestações mais evidentes do tipo de pensamento que permitiu chegarmos à nossa actual tolerância com a ignorância. Outra dessas manifestações é a obsessão com a "utilidade", uma obsessão que suscitou a D. Manuel Clemente, bispo do Porto, uma interessantíssima reflexão na conferência de abertura da Experimentadesign 2011. "A avaliação geral das coisas em termos de "utilidade" levou a extinguir muitos centros de produção cultural agora considerados "ociosos"- precisamente aquela "metade dos nossos sábios", como Herculano considerava os exclaustrados de 1834", notou nessa ocasião. "Desapareceram então muitos espaços de assim dita "inutilidade", precisamente quando ela seria mais viável a prazo, pela superação progressista de "necessidade"".
Mas a "necessidade" ou a "utilidade", só por si, dificilmente proporcionarão a felicidade. E uma das felicidades maiores será sempre a de procurarmos aprender, sendo que "aprender" passará por "atingir a compreensão do que é sugerido pela vida humana espelhada numa cultura histórica de notável esplendor e lucidez", como também escreveu Oakeshott. Uma cultura que inclui a Capela Sistina e a Mona Lisa, mas também muitas outras obras eternas e supremas sobre as quais - felizmente? - nada foi perguntado àqueles estudantes. Imagine-se só que o questionário também incluía questões sobre a Odisseia ou sobre Shakespeare, sobre os Lusíadas ou sobre o nónio de Pedro Nunes... Jornalista

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