Os nossos e os vossos



Pedro Lomba
Público, 2011.11.22

Há uma crítica muito em voga nestes dias que precisa de ser interpretada e atenuada. Refiro-me ao desprezo com que quase toda a gente, desde o político comum da extrema-esquerda a banqueiros como Fernando Ulrich, lamenta o surto de tecnocratas que alastra pela Europa. Aparentemente, financeiros, economistas, gente da academia abençoada por Bruxelas, funcionários do FMI e da Comissão, todos eles passaram a fazer parte deste tempo como nunca no passado.

A Itália apeou Berlusconi e foi buscar um professor de Economia, o sr. Mario Monti, além de ter chamado o FMI para fiscalizar o plano de austeridade. Da mesma maneira a Grécia caiu nas mãos de outro economista, um antigo quadro do Goldman Sachs, Lucas Papademos.

Por cá, tivemos na semana passada nova visita da troika para dizer se estamos no bom caminho. Eles aterram em solo pátrio e dizem como se faz. Conta mais uma única declaração destes especialistas do que meia dúzia de intervenções espavoridas da oposição.

O descrédito dos políticos na Europa, fustigados por eleitorados que eles próprios alimentaram, levou a que grande parte da luta política nestes países seja hoje entre tecnocratas e visões de tecnocratas.

E, no entanto, é importante lembrar duas evidências. A primeira é que os ditos tecnocratas mandam há muito tempo na Europa. O que foi o euro desde o início senão uma criação de tecnocratas? O maior desses técnicos poderosos foi Jacques Delors, que acelerou o processo de integração com vista à união monetária. Os critérios do Pacto de Estabilidade foram também uma invenção de tecnocratas e a sua principal justificação foi sempre apresentada com a típica opacidade da tribo. A política era o que menos contava pelo meio. E todos os outros que vieram a seguir para a Comissão, de Santer a outro economista, Prodi, ou até mesmo a Durão Barroso, que precisou de se despolitizar, pertencem à mesma classe. É um puro gesto hipócrita atacar esta vaga tecnocrática, como se a Europa e o euro tivessem nascido de outra coisa e como se, aliás, pudessem ter nascido de outra coisa.

A segunda evidência é que muitas dos ataques a este império técnico que governa actualmente a Europa não vêm de políticos que, conscientes do desastre e timoratos face ao povo, até andam bem caladinhos. Essas críticas vêm sobretudos de outros tecnocratas.

Muitos porque se lembraram agora daquilo que a arquitectura do euro miseramente omitiu à nascença. O que não deixa de exibir uma espantosa desfaçatez, porque basta palmilhar jornais antigos do fim dos anos 90 para vermos que toda esta gente que agora anda por aí não levantou à altura uma dúvida nem sobre o euro, nem sobre o Tratado de Maastrich que o criou. Com excepção de comunistas e dos eurocépticos conservadores, a tendência foi de contemporização e de ignorância.

Só que, e este é ponto decisivo, para estes notáveis que agora sabem tudo sobre o euro e vituperam a tecnocracia reinante, nessa altura tanto Delors como Prodi eram os seus tecnocratas e, portanto, nada de levantar muita palha contra eles. Não eram agora estes tecnocratas pestíferos que ocupam governos - mesmo que com a anuência e legitimidade dos parlamentos - e que trazem as más notícias da austeridade e da disciplina fiscal. Estes merecem ser combatidos, se necessário nas ruas; os que criaram o euro ou os que pretendem outro caminho para além da responsabilidade e disciplina merecem atenção ou aplauso.

Não duvidem que tarde ou cedo as respostas europeias contra a crise do euro têm de passar pelos povos, porque não basta apresentar o que se faz como factos consumados e indiscutíveis. Mas muitas das críticas iradas contra a "tecnocracia" estão no fundo a propor uma troca: os vossos tecnocratas pelos nossos. Jurista

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António