Da era de Cristo à era comum

Pedro Vaz Patto
A Voz da Verdade, 2011-11-06

Programas escolares australianos já adoptaram a nova terminologia e mais recentemente foi a BBC quem aderiu à proposta. Trata-se de identificar os anos, já não como anteriores ou posteriores ao nascimento de Cristo (A.C. e D.C.), mas com referência àquilo a que se quer chamar a “era comum”. O tempo histórico continua a dividir-se da mesma maneira, mas pretende-se apagar e esquecer a origem histórica desta tradição. Seria o pluralismo religioso das nossas sociedades a justificá-lo, embora nenhum representante de relevo de religiões não cristãs alguma vez tenha sugerido esta ideia.
Mas a tradição não surgiu por acaso e não se explica só por motivos estritamente religiosos. A reviravolta cultural e civilizacional trazida pelo cristianismo justifica essa tradição. O historiador Jaroslav Pelikan salientou que a alteração do calendário é um indício de que «ninguém pode escapar ao facto de que Jesus de Nazaré alterou para sempre a história do mundo».
Isso mesmo tem sido reconhecido por vários pensadores agnósticos.
Assim, num célebre artigo escrito em 1942 (com o título Perché non possiamo non dirci cristiani), o filósofo italiano Benedetto Croce considerava o advento do cristianismo «a maior revolução da história da humanidade», diante da qual todas as outras revoluções são particulares e limitadas, com que não têm paralelo a revolução grega do pensamento e a revolução romana do direito, e da qual dependem as revoluções modernas. É assim porque se trata de uma revolução que opera «no centro da alma, na consciência moral». E –afirma ainda este pensador laico – é uma revolução «tão abrangente e profunda, tão fecunda de consequências, tão inesperada e irresistível no seu actuar, que não é de admirar que possa parecer um milagre, uma revelação do Alto, uma intervenção directa de Deus nas coisas humanas».
Mais recentemente e de forma talvez não tão categórica, o filósofo alemão Jürgen Habermas afirmou: «Do ponto de vista da autopercepção normativa da modernidade, o cristianismo tem sido mais do que um precursor ou catalisador. O universalismo igualitário, do qual emanaram as ideias de liberdade e de solidariedade social, da conduta autónoma da vida e da emancipação, da individual moralidade da consciência, dos direitos humanos e da democracia, é um herdeiro directo da ética judaica da justiça e da ética cristã do amor. Este legado tem sido, sem grandes alterações, objecto de permanente apropriação e reinterpretação crítica e, até hoje, não encontrámos alternativa ao mesmo. À luz dos desafios desta constelação pós-nacional, continuamos a alimentar-nos da substância desta herança. Tudo o resto mais não é do que uma ociosa conversa pós-moderna» (Time of transition, trad. inglesa, Polity, 2006, pp. 150-151).
Ao longo da história mais recente do Ocidente, sucederam-se tentativas de substituir o calendário de referência cristã por outros, particularmente em períodos revolucionários (nas revoluções francesa e soviética) em que se pretendia dar início a uma nova era da história, alternativa à do cristianismo. Tentativas vãs e ilusórias, pois as novas revoluções revelaram-se efémeras, pelo menos quanto ao seu radicalismo, e os novos calendários não ultrapassaram poucos anos.
Foram o judaísmo e o cristianismo a dar um sentido positivo ao tempo e à história, contra a visão pagã de um tempo cíclico, que sempre se repete sem nada trazer de novo. Depois de Jesus Cristo, a história ganhou sentido, e, alimentados pela esperança, podemos acreditar num futuro melhor. Com a substituição do calendário cristão, não se pretende agora iniciar uma nova era de progresso. Desorientada, a cultura pós-moderna deixa de saber de onde vem e para onde vai. À era cristã quer dá como alternativa, apenas e tão só, a “era comum”.

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