Os gregos

 Público 2011-09-24 José Pacheco Pereira
O problema com os gregos é que quase tudo o que se pode pensar, eles pensaram-no primeiro e muitas vezes melhor

Passei os últimos meses com os gregos, não com os modernos, mas com os antigos. Podia dar-me para pior, haverá sempre alguém que o diga. Podia, mas não era a mesma coisa.

Como há vários milénios de gregos "antigos", fico-me com algumas incursões nos séculos quinto e quarto, onde habitam a maioria dos gregos que nós conhecemos, mas que deixa de fora o mundo homérico e mais tarde os bizantinos. No centro desta fase da história grega estão várias guerras, contra os persas, a guerra do Peloponeso e, por fim, a resistência frustrada contra Filipe da Macedónia. Nestes meses de convívio grego vi e ouvi as aulas de Donald Kagan em Yale (mais de 30 horas, pelo menos), e li o seu livro sobre a guerra do Peloponeso, assim como vários textos de Tucídides e Xenofonte que vinham de arrasto. Ler por arrasto, por contágio, é uma das formas mais eficazes de ler. Não está mal.

Tudo isto parece nos nossos dias muito snob, porque ler os clássicos hoje passa por ser presunçoso e acredito que pareça arrogante para quem só lê a literatura contemporânea mais ou menos romanesca, feita de metros e metros de papel pintado nas livrarias com autores muito gabados no Jornal de Letras. Mas, na verdade, até um deputado camiliano como Calisto Elói conhecia o seu Tucídides e, em linhas gerais, um aluno do liceu no século XIX sabia alguma coisa sobre a história grega e latina. Já para não falar de um homem culto do século XVIII que sabia muita coisa sobre os gregos desta época e muito provavelmente lia em grego e, certamente, em latim. Não precisava de ser um literato de grande craveira, apenas um amador de poesia daqueles que na Arcádia Lusitana usavam pseudónimos de pastores de Teócrito e reuniam sob um lema latino bem apropriado para os nossos dias: "Inutilia truncat", acaba com as inutilidades.

O problema com os gregos é que quase tudo o que se pode pensar, eles pensaram-no primeiro e muitas vezes melhor. É por isso que quem os frequenta, ou quem "vive" com eles (como a grande professora Maria Helena Rocha Pereira disse um dia), quase que não precisa de sair desses séculos de milagre, para poder pensar os atribulados dias de hoje.

Os problemas que Donald Kagan, que é um dos grandes especialistas da guerra do Peloponeso, suscita nos seus livros e nas suas aulas não nos são alheios, apesar de o autor, como historiador, ser particularmente sensível aos anacronismos historicistas - pensar que nós e os gregos somos semelhantes, por exemplo -, insistindo no facto de o mundo grego concreto ser radicalmente estranho para um contemporâneo. Um caso que Kagan explora de forma excelente é o da democracia ateniense, mais tarde copiada por outras democracias como a tebana.

Os críticos modernos da democracia grega clássica insistem que essa democracia deixava de fora as mulheres, os escravos, os estrangeiros originários noutra polis que viviam na Ática e os muito pobres. Kagan dá os argumentos necessários para mostrar que se pode discutir a democracia ateniense sem a considerar diminuída por exclusões que, em muitos casos, se mantiveram praticamente até meados do século XX, como é o caso das mulheres. Quanto aos escravos, eram poucos e o seu estatuto em Atenas estava longe de se poder comparar com as sociedades como Esparta (onde uma população inteira estava escravizada) ou no Sul dos EUA. Dito isto, o que era radicalmente novo e, como tal, permanece único até aos nossos dias é mesmo a forma democrática de poder. Foi sobre ela, aliás recusando-a, como já tinham feito homens como Platão e Aristóteles, que os revolucionários americanos construíram a forma de democracia a que podemos chamar moderna.

Porém, por ridícula que possa parecer a comparação, é a essa forma de democracia que os participantes das "acampadas" de Lisboa e Madrid, os communards de Paris em 1871, ou os utópicos da "democracia electrónica" em rede, ou os demagogos brasileiros que colocam cartazes dizendo que "precisamos de médicos e professores, mas não precisamos de vereadores", pretendem chegar. Os atenienses reunidos na colina do Pnyx representam o ideal daquilo que hoje chamamos democracia directa para a distinguir da representativa, e que para os gregos era apenas "a democracia".

No Pnyx podiam regularmente reunir-se alguns milhares de atenienses, homens adultos detentores da cidadania e aí decidir sobre tudo, após ouvir quem quisesse falar. Kagan, usando uma comédia de Aristófanes, relata como os atenienses eram recolhidos das suas distracções, quase sempre animadas discussões políticas no agora, que atrasavam o início da assembleia, com uma corda pintada de fresco cujo arrastamento os obrigava a apressarem-se sob pena de ficarem com a roupa manchada. Lá chegados, cinco, seis mil, em média, sentavam-se no chão e participavam durante várias horas em debates que não conheciam limite de tema nem de tempo. É verdade que as cinco centenas de cidadãos que formavam o conselho, escolhidos à sorte, podiam sentar-se nuns bancos de madeira, mas o princípio da assembleia era o da isegoria, igualdade de discurso, todos tinham o mesmo direito de falar e todos votavam. Claro que as coisas nem sempre são assim, havia diferenças sociais entre os oradores reconhecidas pelos ouvintes e quem falava melhor e mais alto tinha um maior poder de persuasão. Mas a mesma personagem de Aristófanes, irritado com a demora no início da reunião, promete vaiar os oradores e utilizar outros métodos pouco elegantes para os punir de o terem deixado tanto tempo sentado no chão.

As reuniões no Pnyx não eram amáveis mesmo para os poderosos, que sabiam que não tinham nenhuma garantia de ver as suas propostas aprovadas nem de escapar às flutuações de opinião. Como não havia cargos que não fossem ali escolhidos e como podiam ser revogados em qualquer altura, mesmo os generais vitoriosos, talvez os mais influentes personagens no mundo grego, tinham que se esforçar para convencer os seus concidadãos de que era necessário fazer uma nova expedição militar, declarar guerra ou fazer a paz, e no caso de guerra, que recursos estavam disponíveis. Uma das grandes forças da democracia ateniense, que Kagan compara favoravelmente à democracia moderna, é que os mesmos homens que votavam uma declaração de guerra eram aqueles que nela iriam combater como soldados. Os soldados de infantaria, os célebres hoplitas que, organizados em falanges, venciam todas as batalhas contra forças muito superiores, eram em Atenas os mesmos lavradores que na assembleia decidiam sobre o seu próprio destino e eram os estrategos que os comandavam.

Os homens que lá estavam na encosta do Pnyx decidiam tudo, praticamente não havia "representação" do seu poder, e desconheciam distinções entre os poderes legislativos, executivos e judiciais, exercendo-os a todos. Kagan salienta que as decisões conhecidas, tomadas pelos atenienses nestas reuniões, parecem ser de um modo geral sensatas e moderadas, numa sociedade que evitava a todo o custo as decisões radicais, e na qual a violência política durante os períodos democráticos era rara. E outra característica era evitar tomar decisões sobre a propriedade, em particular nunca tendo aceite qualquer perdão de dívidas, o que podia ser, à primeira vista, a mais popular das decisões. Porém, os historiadores salientam que esta experiência democrática coexistiu com um período de estabilidade económica e social, mesmo quando acompanhado por intensa actividade militar. A guerra do Peloponeso, colocando gregos contra gregos, com causas e razões muito semelhantes às dos conflitos do século XX, acabou, no entanto, por corromper este equilíbrio e acelerar o fim da polis e a decadência da democracia. Na verdade, até aos dias de hoje, nunca mais houve qualquer experiência democrática deste tipo.

O segundo momento em que a democracia foi repensada a sério, por gente que tinha poder para transformar as suas decisões em actos concretos e assim modelar um regime político, foi com os fundadores dos EUA. Estes conheciam muito bem os seus "gregos" e tinham sido educados a ler as biografias de Plutarco que incluíam muitos dos homens que fizeram esta Grécia, quer os mais conhecidos como Temistocles, Péricles ou Demóstenes, quer os que já há muito esquecemos como Pelópidas, um dos dois grandes generais tebanos. Do seu conhecimento do mundo antigo veio a grande reflexão que afastou a democracia moderna do modelo da democracia directa ateniense. Mas isso é outra história e fica para outra altura. Historiador

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