A crise da intimidade

Pública, 2011-09-04  Daniel Sampaio

O grande problema actual é o da intimidade. É certo que o modelo social europeu se encontra esgotado e que não se vê saída, a curto prazo, para a crise económica e financeira. No entanto, a verdadeira questão a debater é a organização do nosso quotidiano e o que vamos fazer com as nossas relações mais íntimas.
Tudo parece mudar. Existem mais pessoas a viver sós, sobretudo idosos, que vivem cada vez mais.
Afirma-se a crise do casamento, mas nos divórcios a queixa é de falta de amor, que se procura em novas relações. A facilidade com que os casais hoje rompem mostra, quase sempre, uma dificuldade em entender as verdadeiras causas do mal-estar que tão depressa tornam público.
E, no entanto, a explicação pode ser alcançada por uma análise da evolução sofrida a partir da segunda metade do século XX. Foi aí que as mulheres iniciaram o percurso para a autonomia profissional e conquistaram a liberdade sexual que as caracteriza hoje. Este progresso não lhes deu, ainda, a liberdade por que lutam, pois não ocupam, em muitos postos de trabalho, os lugares de chefia; nem a sociedade deixou de criticar a mudança nos seus comportamentos sexuais, pelo menos em comparação com a benevolência com que continua a privilegiar os dos homens.
Enquanto as mulheres se afirmaram, os homens tornaram-se mais inseguros. A emancipação das mulheres tornou mais evidente a sua vulnerabilidade e a sua dependência emocional em relação a elas. Perante esta situação, muitos homens caminham para uma fusão relacional com as companheiras, em que tudo é exigido, única forma de vencer o medo do abandono, ou o receio da igualdade conjugal (não existente nas relações "tradicionais" do passado). Na intimidade do casal, a violência psicológica, o ciúme e a infidelidade são frequentes, e as tentativas de controlo, facilitadas pelo recurso constante à vigilância dos telemóveis, do correio electrónico e da participação em redes sociais, fornecem o ambiente propício ao aumento da conflitualidade. A exigência frenética de cada vez mais amor, fragiliza a relação conjugal: em vez de construírem uma relação e de edificarem, dia a dia, um amor renovado, homem e mulher procuram um bem-estar individual, um bálsamo para a sua inquietação pessoal. Não admira, por isso, que os divórcios não cessem de aumentar.
As dificuldades na intimidade conjugal não surgem isoladas. Em pleno espectro da crise económica, a sociedade actual intensifica o trabalho e provoca um sentimento quase permanente de cansaço e desânimo. Os casais vivem torturados pelo receio do desemprego e da exclusão social, ou dominados pela exigência dos seus chefes. As relações de trabalho são muitas vezes invadidas por sentimentos de inveja e de competição sem limites, agravando as fragilidades pessoais e os temores individuais. Os computadores e os outros dispositivos electrónicos criaram a ilusão inicial de menos tarefas mas, pelo contrário, invadiram os tempos livres e trouxeram para casa o ambiente de trabalho.
A Internet democratizou o conhecimento e apagou fronteiras, mas criou a ilusão da intimidade virtual, onde os sentimentos são escondidos através de outras identidades e todas as fantasias, tantas vezes muito afastadas da realidade, parecem de fácil concretização.
E, apesar de tudo, tem de existir uma saída, longe do caos e da barbárie. Nunca, como agora, as pessoas reivindicaram o amor e o entendimento. Jamais os pais se preocuparam tanto com os filhos. E a sociedade que parece despenhar-se, nunca foi tão auto-reflexiva como hoje. O futuro melhor, contudo, só será atingido com a verdade e a reflexão permanentes.

Nota: recomendo o livro Les nouvelles solitudes, de Marie-France Hirigoyen, que inspirou este texto.

Psiquiatra
d.sampaio@netcabo.pt

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