O meu 11 de Setembro

Público, 2011-09-09
Eduardo Cintra Torres


No táxi a caminho da sede da Federal Communications Comission (FCC), o motorista e eu fizemos conversa de chacha sobre o falado regresso de Michael Jordan à NBA nesse mês, depois de dois anos sem jogar básquete. Teremos falado do clima? A manhã de terça-feira estava bonita, limpa e temperada, como é hábito depois dos dias húmidos e quentes de Julho e Agosto.

Na FCC, regulador nacional dos media americanos, eu começava dez dias de entrevistas e reuniões em Washington e Nova Iorque e outros locais próximos para conhecer melhor o universo profissional e institucional dos media, incluindo o serviço público, e para reunir elementos para a minha tese de mestrado. Na FCC, a reunião com um amável burocrata decorria normalmente num pequeno cubículo sem janelas quando alguém bateu à porta e segredou ao meu interlocutor. O colega, disse-me ele, informou-o de que um avião tinha chocado contra uma das torres do World Trade Center, em Manhattan. Não pensámos senão em acidente; a informação não referia a dimensão do desastre. Eu estivera no dia 8 nas Torres Gémeas, edifícios cuja dimensão gigantesca não lhes roubava a graça da beleza. Na viagem anterior a Nova Iorque, achei-as "grandes de mais", uma percepção tipicamente portuguesa. Em 2001 achei-as grandiosas na perfeição formal e na imponência.

A reunião continuou. O mesmo funcionário interrompeu-a de novo para informar do choque do segundo avião. Uns minutos depois o meu interlocutor levou-me a uma enorme sala de reuniões no mesmo andar, com uma janela em "cinemascope". Ao fundo, talvez a dois quilómetros, vi o Pentágono - a arder.

Toda a gente saiu da sede da FCC. Dezenas de pessoas desciam pelas escadas com pressa controlada e em silêncio. Nenhum pânico, mas medo, nas caras e no silêncio. Na rua, dirigi-me ao Mall, o grande espaço público entre o Capitólio e o Monumento a Lincoln. Muitas centenas de pessoas atravessavam o relvado nos dois sentidos em passo rápido. Silêncio. Começavam a formar-se enormes filas de carros nas avenidas laterais, em direcção às saídas de Washington, mas não havia qualquer agitação dentro dos carros, nem buzinas, nada. Um estranho silêncio urbano.

Passei pela Casa Branca, receoso de que pudesse ser atacada. Havia gente a sair a toda a pressa da Presidência, com pastas de documentos. Foram as únicas pessoas que vi correr naquela manhã. Poderia haver mais aviões a caminho de Washington. Só vim a saber mais tarde que o voo 93 da United Airlines fora desviado para atingir o Capitólio ou a Casa Branca, acabando num campo na Pensilvânia. Os que fugiam da Casa Branca sabiam.

O centro de imprensa para jornalistas estrangeiros é ali perto. Fui para a sala do funcionário com quem tinha organizado o meu plano de reuniões e entrevistas. Foi ali que vi, pela televisão, as Torres Gémeas ardendo e ruindo. O funcionário do centro não disse uma palavra, eu também não: um novo silêncio, a dizer que o acontecimento era inexplicável, incompreensível, grande de mais para as nossas cabeças.

Deram-me uma sala de um funcionário em férias, onde estive um dia e uma noite, vendo televisão e procurando comunicar. Durante horas não houve comunicações telefónicas, mas, curiosamente, pude enviar e receber emails. A minha mulher e os meus filhos tinham regressado de Nova Iorque a Lisboa na noite de 10 de Setembro e estavam em voo no momento dos ataques. Só souberam no táxi, à saída da Portela.

No dia seguinte passei perto do Pentágono, mas não era possível aproximar-me. A ferida no edifício representava o mais incrível ataque ao império político-militar americano: no centro do centro. Mas, perante a imensidão e a espectacularidade do ataque em Nova Iorque, sobreveio um novo e estranho silêncio, generalizado aos media: à parte a televisão local da região de Washington, que mostrava o Pentágono fumegante num canto do ecrã, a humilhação do ataque na capital federal tornou-se num tema residual nos media americanos e de todo o mundo.

Depois de algumas entrevistas em Washington, voltei para Nova Iorque exactamente quando e como planeara: na quinta-feira à tarde, 13 de Setembro, à tarde, de comboio. De qualquer modo, o espaço aéreo estava encerrado. Havia filas imensas quando comprei o bilhete na véspera.

Ao fim da tarde de dia 13, encontrei Manhattan quase deserta. Carros nem vê-los, gente, pouca. Alguns turistas apanhados no turbilhão da História. Nos encontros, profissionais e académicos só queriam falar do evento, comprovando a capacidade de um acontecimento brutal para absorver toda a atenção da esmagadora maioria dos indivíduos durante alguns dias (não mais de cinco, acho). Nos escritórios, empregados usavam os computadores para ler a Bíblia.

No fim de semana, as ruas de Manhattan encheram-se de gente a pé. Papéis colados nas paredes e nas cabinas telefónicas mostravam o desespero de quem procurava desaparecidos. Santuários improvisados no chão e nas paredes juntavam velas, pinturas, mensagens. Uma parada de cidadãos e bandas locais percorreu Manhattan no limite da zona encerrada. Percorri a cidade com a correspondente do PÚBLICO, Ana Gomes Ferreira. Comprei uma T-shirt, daquelas idiotas, que ainda guardo: "America under attack. I can"t believe I got out".

Aproximei-me o mais que pude das ruínas do World Trade Center. Toda a Baixa da cidade estava deserta, à excepção de carros de exteriores de jornalistas e, lá adiante, na fornalha, de bombeiros e equipas de socorro e protecção civil. A uma centena de metros, vi o fumo que se levantava do entulho de morte. As agora tão conhecidas estruturas decorativas exteriores das torres, derrubadas para o seu próprio vulcão, elevavam-se mesmo assim a uma altura de três andares. Um dia desses, atravessando uma estação de metro, passou uma equipa de bombeiros regressados da cratera do World Tarde Center e toda a gente, espontaneamente, irrompeu em palmas que o eco ampliava.

Farto de tudo, ao quinto dia, fui um fim de tarde para o Metropolitan Museum. Quase vazio, proporcionou-me uma paz e uma fruição ímpar. Subi ao terraço. O pôr do sol cobria de sombra o Central Park e recortava de vermelho os edifícios a ocidente. No bar do terraço, gente descontraída bebia uns drinks enquanto a sul o fumo do World Trade Center subia devagar no céu sem vento.

No dia 19, cheguei ao aeroporto três horas antes do voo, na perspectiva de confusão, controles, atrasos. Sucedeu o contrário, só faltava dizerem: "Vá-se embora enquanto é tempo." Deram-me lugar num voo anterior ao que tinha marcado um mês antes. Corri para o avião. Entre chegar ao aeroporto e a descolagem passou meia hora.

Naqueles dias, vi o mais que pude televisão. Regional, temática, mas principalmente as três grandes cadeias: ABC, CBS e NBC. No regresso a Lisboa, conversando nas antigas instalações do ICS com Manuel Villaverde Cabral, meu orientador de tese, comentei que o dispositivo comunicacional da TV americana naquele evento de dimensão universal se assemelhava muito ao da nossa, em comparação com a pequena tragédia nacional, seis meses antes, quando ruiu no Douro a Ponte de Hintze Ribeiro, levando consigo 59 pessoas. O meu orientador, com a inteligência e a perspicácia que o caracterizam, perguntou-me: e por que é que não põe isso na tese?

Mudei substancialmente o tema da dissertação. O 11 de Setembro, como o vi na televisão em Washington e Nova Iorque, entrou nela como um exemplo modelar do género das tragédias televisivas, partilhando inúmeras características com o que a RTP, SIC e TVI fizeram em Março de 2001, em Castelo de Paiva.

Queremos acreditar que o terrorismo não muda o mundo. Escrevendo sobre o atentado terrorista que vitimou o chefe do Governo espanhol Antonio Cánovas, nas termas de Santa Águeda, em 1897, Eça de Queirós escrevia que a Morte matara, mas... "No entanto, pelas quietas colinas de Santa Águeda, os pinheirais, altos no desatento azul, não cessam o seu indolente, eterno ramalhar... e nos silvados as borboletas, aos pares, voam deslumbradamente por cima das madre-silvas e das amoras maduras."

Nem sempre é assim. O regicídio no Terreiro do Paço apressou a República. Outro assassinato, em Sarajevo, 1914, apressou a I Guerra Mundial. E o 11 de Setembro, matando mais gente do que Pearl Harbor, atingindo a América nos seus maiores símbolos, alterando estratégias políticas e militares, usando todas as armas do inimigo - os aviões comerciais, os edifícios simbólicos e os directos da televisão -, repercutindo-se no Afeganistão, no Iraque, em todo o mundo árabe, poderá não ter "mudado o mundo", expressão hiperbólica sem grande sentido, mas nesta década mudou o curso da vida de muitas nações e interferiu na vida de centenas de milhões de pessoas.

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