Onde as leis da natureza se embrenham na confusão
Público, 20100731 José Pacheco Pereira
Na semana passada soube-se aquilo que já se sabia, que o caso Freeport acabou em nada, como os rios comidos pela areiaNão é que também por cá a coisa não vá dar à comida e ao sexo, como no conjunto do Planeta Terra, só que os portugueses são senhores, ou servos, não se sabe bem, de uma infinita capacidade de confusão e complicação que estarreceria o mais complexo dos animais. Acresce que têm pouca comida e os seus escritores são notórios na incapacidade de relatarem cenas de sexo. Na gula, há muita, no sexo, ficam-se pela obscenidade, onde sempre têm as anedotas do Bocage.
Veja-se alguns estudos de caso, relativos à comida. Na semana passada soube-se aquilo que já se sabia - uma peculiaridade portuguesa é o saber-se de novo o que já se sabia, perceberam bem, ó animais superiores? - que o caso Freeport acabou em nada, como os rios comidos pela areia. Durou um dia saber-se o que já se sabia, porque no dia seguinte veio a saber-se o que também já se sabia, ou seja, que tudo ficou por esclarecer. O motivo é que foi novidade: "Falta de tempo." Felizmente que temos entre nós gente que pensa o tempo em termos cosmológicos e para quem seis anos é nada. Seis anos de Freeport, um arranque, uma operação de aprendizes de feiticeiros (uns imberbes, comparados com os de hoje no gabinete do primeiro-ministro), depois uma hibernação ainda não explicada e que teria sido objecto de inquérito cujos resultados foram para o mesmo rio arenoso, depois um rearranque com uma nova leva de personagens, o sr. Smith, os tios e os primos do engenheiro, logo à cabeça separados por uma declaração de inocência do primeiro-ministro feita pelo procurador-geral da República e pela procuradora encarregada do processo, que logo separaram a arraia-miúda da graúda. Mais uma proclamação do primeiro-ministro sobre a declaração do procurador-geral. Em seguida, uma autoridade vinda do Olimpo bruxelense veio ameaçar os investigadores a não serem muito inquisitivos com "os de cima" e acabou também a ser processada. Depois novas promessas de celeridade e silêncio. De vez em quando aparecia a notícia de que já estava tudo feito e que o primeiro-ministro estaria de fora de tudo. Mais meses, até agora aparecer um fim que durou um dia. No dia seguinte já temos tudo outra vez em cima da mesa. Não se sabe do dinheiro, não se sabe do Pinóquio, não se sabe se o engenheiro era "caro" a Manuel Pedro, não se sabe nada. Estamos pois prontos para outra.
Depois, na mesma semana, outro caso relativo à comida, com a mesma capacidade de confusão e engano que deixaria um camaleão ou uma raposa perplexos. Havia, há um mês, um negócio de muitos milhões que era desejado pela maioria dos acionistas da nossa empresa-bandeira, a PT. Implicava vender a parte da PT na Vivo brasileira, negócio primeiro negado, porque o preço oferecido era baixo, e depois, à última hora, aceite por uma larga maioria dos acionistas, porque o preço lhe pareceria bom ou então porque temiam consequências. A Telefónica vale dez vezes mais do que a PT, e ambas a competirem pela Vivo poderia dar uma daquela cenas do Planeta Terra de sangue por todo o lado no gelo. Mas veio o Possante, para usar o nome brasileiro, o nosso Mighty Mouse nacional, sob a forma do punho duro do nosso primeiro-ministro brandindo uma golden share, um amuleto moderno que infunde respeito e poder. Nem pensar em vender, porque a posse da Vivo é "estratégica para a PT". O comum dos mortais pensou que o que era "estratégico para a PT" era a própria Vivo e nada mais, a grande companhia de telefonia móvel do Brasil, com um potencial de crescimento anual superior a todos os assinantes da TMN, e que oferecia aos acionistas da PT abundantes dividendos. Pois se pensou assim, enganou-se e foi levada como as incautas moscas para o brilho de seda da teia da aranha.
É que um mês depois, num outro golpe de génio do nosso Possante, e sob a sua benevolente orientação, vendeu-se o "activo estratégico" da Vivo, por um preço que é quase igual ao de há um mês (onde não era o preço que contava mas o "potencial estratégico" da Vivo...), e, para disfarçar que o negócio não era o mesmo e que a mão do Possante não era afinal fraca, comprou-se uma pequena participação numa empresa brasileira (Lula veio logo lembrá-lo a quem se esquecera) que não tem nenhuma das qualidades "estratégicas" da Vivo. Passou-se de comer foie-gras do Périgord para paté em lata, mas tenho a certeza que alguém para além da Telefónica vai continuar na boa comida, nem que seja para manter a encenação de que foi o nosso poderoso Governo e a sua golden share que permitiram este "grande negócio".
Do dr. Darwin, que estudou tudo, ao dr. E. O. Wilson, que estuda as formigas, este canto da Península Ibérica é tido como um verdadeiro caldeirão da decadência das espécies. Há também quem nos classifique nos extremófilos, a viver no ácido sulfúrico. Um povo que come esta comida degradada, que lhe é atirada de cima com desprezo, como se fosse maná, não vai longe. Até um dia, se ainda houver força, mas ainda vai durar muito tempo. Historiador
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