A salvação do Estado social está no Estado garantia

Público2010-07-16 José Manuel Fernandes
Como os demagogos que instrumentalizam o medo, defensores do Estado providência apostam na ignorância do cidadão

A ignorância é o terreno onde medra a demagogia dos políticos. E são os medos que a ignorância propícia que abrem caminho ao populismo. Ora, em tempos de crise, não há medo maior do que o de perder os poucos apoios sociais de que se dispõe. Não admira por isso que, a par com a "história de Carochinha" do neoliberalismo - esse monstro que ninguém sabe sequer definir o que é -, tenha agora surgido o papão do fim do Estado social. Nas últimas Jornadas Parlamentares do PS, sem nada para oferecer de substancial a um bando de deputados desorientados, Augusto Santos Silva e José Sócrates investiram contra a ideia do "Estado garantia". Explorando a ignorância reinante - em especial a ignorância dos jornalistas, apenas atentos ao sound byte -, o inimitável Silva chegou a dizer que a ideia de um "Estado garantia" por oposição ao seu "amado" Estado providência era "um verdadeiro monumento que vai marcar o pensamento político nas próximas décadas".

Qual é o objectivo deste tipo de discurso? Primeiro, criar a ideia de que qualquer mudança nas regras de funcionamento do nosso Estado social corresponderá sempre à sua destruição ou amputação. Depois, limitar qualquer debate aos parâmetros pré-definidos pelos que "amam" o Estado providência. Contudo, se houvesse um pouco mais de curiosidade intelectual e menos preguiça mental, estes ataques à ideia de um Estado garantia não teriam passado sem um mínimo de escrutínio público e mediático. Até porque, ao contrário desse molusco indefinível que dá pelo nome de neoliberalismo, existe abundante literatura sobre o Estado garantia. Mais: o conceito já foi objecto de vários debates públicos em Portugal, incluindo um ciclo em 2006/2007 (as Conferências dos Jerónimos) em que participou, que eu tivesse notado, pelo menos um membro do actual Governo, assim como nas jornadas da hospitalização privada de Outubro de 2009, que José Sócrates aceitou abrir e onde Maria de Belém foi oradora (estive lá).

Na verdade, de que se fala quando se fala de Estado garantia? Em primeiro lugar, de um Estado social que recupera os seus valores iniciais - "garantir a todos os cidadãos aquele mínimo de liberdade de escolha que concretiza a dignidade humana e, portanto, a igualdade de oportunidades no exercício dos direitos sociais", como escreveu Fernando Adão da Fonseca - e recusa os modelos monopolistas que tornaram ineficientes, burocráticas e centralizadoras as agências públicas encarregues de prestar serviços sociais. Em segundo lugar, de um Estado social que devolve aos cidadãos e à sociedade protagonismo e responsabilidade, na linha do velho e bom princípio da subsidiariedade. Ou, como escreveu já em 2005, no PÚBLICO, Mário Pinto, de "um Estado social subsidiário, em vez de um Estado social-burocrático de direcção central".

É fácil percebermos aquilo de que estamos a falar, se estudarmos as reformas que tiveram lugar na Suécia ao longo dos últimos 20 anos, realizadas curiosamente por governos sociais-democratas. Nesse país, após se ter verificado que os graus de cobertura do seu Estado social eram não só economicamente incomportáveis, como estavam a limitar o desenvolvimento económico, acabou-se com o monopólio público no fornecimento de serviços sociais e desregulou-se também este sector. Em áreas como a assistência aos idosos, o sistema educativo ou a rede de jardins-de-infância, passou a ser possível a concorrência entre instituições públicas e entre estas e instituições privadas. O Estado não deixou de assegurar o financiamento de todos os serviços, mas os cidadãos e as famílias passaram a ter liberdade de escolha. O resultado destas reformas foi o retomar de um crescimento económico mais vigoroso, ao mesmo tempo que recuava o peso do Estado na economia. A Suécia não deixou de ser um Estado social - e um Estado social muito mais generoso e eficaz que o português -, mas passou a respeitar mais a liberdade dos seus cidadãos, ao mesmo tempo que salvava os mecanismos essenciais quer do crescimento económico, quer da solidariedade social.

A forma analfabeta e preconceituosa como os debates políticos decorrem em Portugal permite que políticos à beira de um ataque de nervos tentem instrumentalizar a ignorância e os medos e saquem da pistola sempre que um incauto fala em instituições privadas. É uma retórica duplamente criminosa: primeiro, porque insistir no monopólio público dos serviços do Estado social é condená-los à morte lenta por falta de recursos, por via da multiplicação no futuro dos "cortes" do presente; depois, porque acentua as clivagens sociais, ao condenar os mais pobres a serviços degradados, ao mesmo tempo que os menos pobres escapam, sempre que podem, para o sector privado.

A realidade é muito dura e não há como fugir dela. É ver, por exemplo, como em nome da "racionalização" da rede de escolas públicas se atropelam, de forma burocrática e por imposição superior, quer os projectos educativos adaptados às realidades locais, quer toda e qualquer racionalidade de gestão, ao criarem-se os mega-agrupamentos. E é verificar como, apesar de circunstâncias económicas que não são muito favoráveis, aumenta a percentagem dos jovens que frequenta escolas privadas: só no ensino secundário o peso do sector privado passou de 7,2 para 13,5 por cento nos últimos 15 anos. Ou seja, a forma como todos os que podem têm vindo a reagir à degradação de uma parte muito importante das escolas públicas - fugindo delas - agrava a dualidade social e mina o princípio da igualdade de oportunidades. Mais: a falsa gratuitidade e universalidade dos serviços públicos de saúde e educação ou dos sistemas de apoio social tem-se traduzido numa prisão que impede a liberdade de escolha por parte dos cidadãos, o que viola a sua dignidade enquanto homens livres. Nenhuma propaganda, nem nenhuma política pontual são ou serão capazes de mascarar este caminho para níveis de serviços sociais cada vez mais insatisfatórios e desiguais.

Ao entrincheirarem-se em posições que só o dogmatismo ideológico suporta, alguns dos nossos demagogos podem obter efeitos políticos de curto prazo ao explorarem a ignorância dominante, mas ao mesmo tempo enterram a cabeça na areia. Ao recusarem-se a ver que só fazendo regressar o Estado social à nobreza original do Estado garantia se pode salvar, em última análise, uma sociedade que garanta a todos os cidadãos um mínimo de dignidade, recusam-se a admitir que a Terra se move. E pur si muove! Jornalista (www.twitter/jmf1957) Um homem poderoso convida uma miúda de 13 anos para a casa de um amigo famoso. Prometendo fazer dela uma estrela, pede-lhe que se dispa para lhe tirar fotografias. Isto depois de lhe dar champanhe a beber e a fazer experimentar drogas. Mas antes de a violar e sodomizar. Quando confrontado com a justiça, esse homem poderoso confessou os seus crimes - o que não o impediu de comentar, mais tarde, que "todos sonham em ter sexo com raparigas novas". Novinhas mesmo, de preferência com 13 anos, supõe-se.

Um monstro, dir-se-ia. Não. A crer nos relatos da imprensa portuguesa este homem poderoso, quando foi confrontado com a hipótese de vir a ser castigado pelos crimes, algo descrito como uma "saga legal", viveu "um pesadelo". Quando um tribunal, invocando uma falha técnica no processo judicial, mas não o libertando da culpa, o deixou sair em liberdade total, logo se ouviram aplausos e festejos pelo fim do "dramático desenvolvimento".

Se este homem poderoso fosse um bispo, nunca teria sido tratado com esta complacência, para não dizer com esta cumplicidade. Mas o homem poderoso chamava-se Roman Polanski, é um homem "de cultura", e mais uma vez se provou que há criminosos e criminosos. E que os crimes de pedofilia só são crimes, quando são perpetrados pelos criminosos "certos".

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