Coisas que se aprendem com o futebol

Público, 20100701 Helena Matos
Neste jogo pela PT, quando os árbitros, em vez de arbitrar, decidem jogar, cada lance é mais desastroso que o anterior

1.Deu para perceber que o "duelo ibérico" é um mau negócio para Portugal e uma boa jogada para a Espanha? Portugal é um Estado. Pobre, ciclotímico e um pouco desatinado, mas um Estado sem problemas de identidade ou de fronteiras. Coisa que a Espanha está longe de ser. De cada vez que embarcamos na designação "ibérico", seja em mercados, encontros ou campeonatos, ajudamos a Espanha a iludir o seu problema com a Catalunha, o País Basco e todos os outros nacionalismos que por ali campeiam - agora até descobriram que existe o valenciano e o andaluz, pois os nacionalismos estão para a invenção das línguas como a bola para o futebol. O busílis da questão é que, ao embarcarmos nesse caldeirão ibérico composto por nações que andam a discutir se são estados e outras minundências que fazem o dia-a-dia da Espanha e que muito dinheiro e influência rendem aos diferentes nacionalismos, colocamo-nos a nós, que somos um Estado, nesse patamar das nações que não só não nos rende nada como nos subalterniza e retira influência. Porque, na hora da verdade, os mesmos catalães e bascos do folclore das nações da Ibéria, que andam de símbolos independentistas no braço, apostam na selecção de Espanha. Seja no futebol ou nos negócios.

Assim, recuperemos a designação "luso-espanhol", que coloca cada um dos países em seu devido lugar, e deixemos o termo "ibérico" para aquelas embalagens de costeletas provenientes de Espanha mas que os perspicazes empresários espanhóis sabem que compraremos com muito mais facilidade se, em vez de espanhol, tiverem escrito ibérico.

2.O facto de não me interessar pelo futebol em si mesmo traz-me inúmeras vantagens. Uma delas, e a mais óbvia, é a de, aquando dos jogos, usufruir de espaços geralmente atulhados de gente ou de automóveis mas então semivazios. A outra vantagem, embora menos conhecida mas nem por isso menos interessante, é surgirem por todo o lado as histórias fabulosas que rodeiam o dito desporto-rei. Ao fascínio dos factos há ainda que acrescentar que estas histórias nos são contadas habitualmente por gente que sabe que, tal como um golo se marca numa fracção de segundo, também um leitor se perde ou ganha na primeira linha do texto. Em Portugal, Ferreira Fernandes é mestre nestes relatos do que acontece para lá do jogo e foi graças a ele que, há anos, descobri o árbitro brasileiro Gilberto Almeida Rego, homem que, num Argentina-França, deu o apito final aos 84 minutos, por sinal no preciso instante em que um avançado francês corria isolado para a baliza argentina. Como se calcula, a seguir gerou-se um pandemónio e no ar ficou sempre a suspeição sobre a seriedade daquele jogo.

Lembrei-me de Gilberto Almeida Rego ao saber que o Governo português usara a golden share que detém na PT para impedir a venda da Vivo à Telefónica. Este intervencionismo estatal, ou em linguagem de futebol de árbitro a fazer de conta que remata, já em 2007 levara a que fosse chumbada a OPA da Sonae sobre a PT. Desde então era evidente neste jogo pela PT que, quando os árbitros, em vez de arbitrarem, decidem jogar, cada lance é mais desastroso que o anterior.

3.Enquanto adepta das histórias do futebol, dei de caras com o caso do Brasil-Chile, disputado no Maracanã em 1989, jogo no qual se decidia o apuramento para o Mundial de 1990. Segundo leio no texto de Brian Homewood, que assistiu ao encontro, já se estava na segunda parte, com o Brasil a ganhar por 1-0, quando um foguete lançado de dentro do estádio cai muito próximo da baliza chilena. Em segundos instala-se o caos no Maracanã: o guarda-redes chileno, Roberto Rojas, está por terra e tem sangue na cara. O jogo é suspenso e os adeptos brasileiros saem do Maracanã em ambiente de luto: temem que um caso de tal gravidade leve à sua exclusão do Mundial. E tinham fortes razões para assim pensar.

Nas horas seguintes, os acontecimentos sucedem-se até que aquilo que aconteceu no estádio passou a ser visto de outro modo: o sangue na cara de Roberto Rojas era real, contudo não fora provocado pelo petardo, mas sim pelo canivete que o guarda-redes muito oportunamente trazia escondido na luva e com que se mutilara durante a confusão gerada pelo rebentamento.

Ao fim de algumas horas, as 132.000 pessoas que tinham assistido a este jogo concluíam que aquilo que acontecera não era aquilo que tinham julgado ver. O Chile acabou excluído do Mundial de 1990 e também do de 1994. Já a lançadora do petardo, Rosemary de Mello de seu nome, fez o habitual percurso de vilã a capa da Playboy brasileira (para os interessados, consultar o número de 15 de Novembro de 1989).

A tentação de criar um facto estrondoso que aparentemente decorre à frente dos olhos de todos de modo a gerar uma reviravolta nos resultados revelou-se um risco excessivo no futebol. O mesmo não se pode dizer da política. Em Portugal, esta tentação tem pairado no ar e pode dominar mesmo as próximas presidenciais, que, tudo indica, em termos de argumentário de campanha, serão muito mais duras do que as de 2006.

Um dos primeiros sinais desta alteração de registo chegou quando Manuel Alegre se viu obrigado a dar esclarecimentos sobre se tinha ou não desertado do serviço militar. Sintomaticamente, o assunto não tinha merecido qualquer referência nas anteriores presidenciais, em que Manuel Alegre também foi candidato. Depois Cavaco Silva viu-se confrontado com a transformação da sua decisão de se fazer representar no funeral de José Saramago não numa prosaica polémica mas já num antecaso. Tivesse Saramago morrido uns meses depois e a campanha de Cavaco Silva teria um sério problema a resolver.

É enorme a vulnerabilidade dos candidatos perante estes não-casos. Um candidato a navegar contra uma torrente de notícias que nem se podem desmentir porque não reportam a nada de concreto é um exercício quase desesperado. E basta ter lido esta semana a transcrição no Correio da Manhã de uma parte da conversa que Rui Pedro Soares e Paulo Penedos mantiveram no dia 25 de Junho de 2009 para perceber como há quem esteja disponível para usar as técnicas de Roberto Rojas. A dado momento, segundo o Correio da Manhã, Rui Pedro Soares disse a Paulo Penedos: "tem de ser forçado, ele devia falar. Ele é candidato à Presidência da República, tem de dizer que o Presidente parece que está a ser parcial em favor do PSD, que está preocupado com uma empresa privada." Ou seja, Rui Pedro Soares queria que Paulo Penedos telefonasse a Manuel Alegre para o forçar a criticar a intervenção de Cavaco Silva no caso PT/TVI. Rui Pedro Soares até fornecia o argumentário: Cavaco estava preocupado com uma empresa privada. E trata Manuel Alegre como um da sua igualha. Felizmente que daquela vez os boys não conseguiram os seus intentos e, tal como Roberto Rojas, viram expostos diante de todos os seus artifícios.

Mas convém não esquecer que, nas campanhas políticas, ao contrário do que acontece no futebol, ninguém pode parar o jogo. E, tanto quanto a vida ensina, não só é mais fácil enganar um país inteiro do que os 132 mil adeptos que enchiam o Maracanã para aquele Brasil-Chile como os países se conseguem enganar durante mais tempo.

4."Uma das instruções que demos aos responsáveis pelo programa de entretenimento que se oferece nos écrans é que se podem repetir as imagens de jogadas, mas não de jogadas polémicas. O que aconteceu ontem foi um erro. Seremos mais rigorosos, de modo a que não se repita" - declarou o porta-voz da FIFA, Nicolas Maignot, a propósito do sucedido no jogo México-Argentina, em que o primeiro golo da partida, marcado pelos argentinos, nasceu de um fora-de-jogo. Como devo fazer parte dos cem portugueses (talvez não sejamos tantos!) que se declaram ignorantes e incompetentes para discutir as decisões dos árbitros, deixo a questão futebolística do fora-de-jogo no Argentina-México para os restantes 10.656.429 portugueses.

Porque aquilo que o senhor Maignot declarou é política pura: não interessa o que acontece. Não interessa o que se faz. Apenas conta o que se vê, daí a importância sobre o que se deixa ver. O "entretenimento" sobrepõe-se à realidade. Este papel de editor da realidade que a FIFA se arroga dentro dos estádios e para matérias de bolas e balizas, esta utilização perversa do termo "polémicas" - como se polémicas tivessem sido as jogadas e não as decisões dos árbitros - é algo que conhecemos bem em Portugal no campo da política: todos os dias se acrescentam detalhes às negociatas, aos conluios, ao tráfico de influências, e é como se nada acontecesse ou tivesse acontecido. Graças ao filtro da propaganda oficial e desse simulacro de justiça que anula, arquiva e prescreve tudo o que possa pôr em causa o poder instituído, as "jogadas polémicas" não existem oficialmente. E o que não é oficial é inexistente. E se por acaso ou desleixo dos guardiões-editores vislumbramos alguma jogada polémica, logo mais medidas serão tomadas para que o erro não se repita. Como chave de ouro desta forma de ver e actuar em que o estádio de Soccer City é apenas uma alegoria, o erro não foi o árbitro ter validado o golo, mas sim os monitores terem demonstrado à exaustão aquilo que muitos (até o próprio autor do golo) sabiam ter acontecido: uma jogada irregular. Nicolas Maignot não é apenas o porta-voz da FIFA. É o nosso homem. Um guru, por assim dizer. Ensaísta

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