Pois é, já há muito tempo que só se transmite folclore transmontano

José Pacheco Pereira

Público, 20091024

A questão da "asfixia democrática" é das mais incómodas para o PS e para os próceres do pensamento único


Um notável anúncio do Euromilhões diz-nos que "este canal acaba de ser comprado pelo senhor Nuno Cabral de Montalegre e a partir de agora transmitirá apenas folclore transmontano". Nem sei como é que se deixou passar esta notícia que explica porque é que já há tanto tempo só vemos "folclore transmontano" na televisão, nos jornais, na imprensa. Como já só vemos "folclore transmontano" pensamos que não há mundo, fora da visão que o senhor Nuno Cabral nos dá todos os dias. O potencial subversivo desta notícia é dizer-nos que isso se passa porque o senhor Nuno Cabral "comprou" o canal e que este transmite "apenas" "folclore transmontano", quando nos noticiários do dito "canal" se diz que se passa toda a música do mundo e se fala de forma plural sobre a vida fora de Montalegre.

O Vasco Pulido Valente diz, e bem, que é difícil explicar a mediocridade aos medíocres, e eu acrescento que é igualmente difícil explicar a falta de ar a quem está habituado a respirar tóxicos. Usando o exemplo actual, é difícil dizer aos ouvintes do canal único, que estão "apenas" a ouvir "folclore transmontano" e que isso se deve ao facto de o senhor Nuno Cabral ter "comprado" o dito órgão de comunicação social. É por isso que, mais uma vez, sim mais uma vez e quantas forem precisas, eu vou falar da qualidade pouco sadia do ar da nossa democracia. Sim, falar da "asfixia democrática", aquela coisa de que este mesmo pensamento único não quer que se fale, por razões que se percebem demasiado bem.

Decretou-se, ao estilo rebanho, que foi por isso que o PSD perdeu as eleições. Como sabem? Não sabem, é a olho e é conveniente quer para o PS (que assim pretende calar as críticas à "compra" do senhor Nuno Cabral) quer para os opositores de Manuela Ferreira Leite, que assim não só secundam o PS, como apontam para os seus inimigos internos, porque é suposto que tenha sido por recomendação minha e de Paulo Rangel que disso se falou na campanha. Cómodo, mas falso. Mas hoje, quando a "verdade" é um anátema ou um insulto, isso também não incomoda ninguém. E, ao fim de dez em onze comentadores e jornalistas na SICN ou na TSF ou na RTPN a dizerem o mesmo, quem é que se atreve a duvidar?

Mas vamos ao "folclore transmontano", à música única que todos os canais transmitem. Há vários trechos desta música única, por exemplo, os relativos ao estado do mundo associados à completa ausência de espírito crítico sempre que o Presidente Obama está envolvido num assunto qualquer; os relativos à Europa e ao "europeísmo" apodíctico, insusceptível de discussão, a que só se pode dizer "sim" sob pena de envio para o Inferno do nacionalismo provinciano; e, por último, fico-me pela própria questão da "asfixia democrática" como exemplo nacional. Os dois primeiros mostram como em matérias tão decisivas se deixou de pensar, ou seja, de questionar se o "folclore transmontano" nos diz alguma coisa sobre o que se está a passar no Afeganistão, ou se o Tratado de Lisboa tem que ser acelerado não vão os conservadores ganhar as eleições no Reino Unido. Uma parte importante da "asfixia democrática" é a prevalência do pensamento único sobre Obama, a União Europeia, a crise e os seus fundamentos, o "neoliberalismo", etc., etc.

Deixou de se poder pensar de fora do "folclore transmontano", e parece tão absurdo fazê-lo que a acusação soviética de loucura e de promessa de internamento já tem sido feita pelos mastins dos blogues "transmontanos". Para eles, Cavaco Silva é louco ou senil, Manuela Ferreira Leite, amavelmente tratada pela "velha", idem aspas, eu também não estou melhor, José Manuel Fernandes, Cintra Torres e mais meia dúzia que ainda escreve com independência nos blogues e nos jornais, estamos todos obviamente doentes porque não vemos nada de preclaro no "folclore transmontano". A questão da "asfixia democrática" começa exactamente aqui, nas pessoas que querem respirar com os dois pulmões e ainda distinguem o ar puro do dióxido de carbono, logo têm que ser mutantes loucos. É por isso que a questão da "asfixia democrática" é tão incómoda que suscita esta unanimidade para a calar. Exactamente porque existe, ela não pode sequer ser nomeada sem ruptura do véu que a encobre. Por isso, é das mais incómodas para o PS e para os próceres do pensamento único que nos pastoreiam do lado do poder.

Primeiro, vamos ao termo e depois à coisa. O termo já se tornou um rodriguinho, mas a questão fia mais fino. A origem esteve num discurso de Paulo Rangel num 25 de Abril em que falou de "claustrofobia democrática", expressão que francamente prefiro à "asfixia", embora o que interessa é saber se a coisa existe e não se o nome é o melhor. O que é interessante lembrar é que o discurso de Rangel foi então muito positivamente saudado e, hoje, a mesma coisa, exactamente a mesma coisa, aparece como um atestado de derrota, apesar de Rangel ter falado nela na sua campanha vitoriosa nas eleições europeias. Pelos vistos, a "asfixia democrática" deu vitória nas europeias e derrota nas legislativas.

Dizer que existem limitações à plena liberdade dos portugueses, em particular, de exprimirem as suas opiniões, sem sofrerem retaliações nos seus interesses, seja de manter o seu emprego ou de conseguirem a devida promoção, seja de não serem administrativamente punidos, seja de não verem os seus negócios ilegitimamente prejudicados, ou de serem às claras ou, acima de tudo, às escuras, perseguidos porque não gostam do Governo, do PS, da maçonaria, ou das "empresas do regime", como diz Henrique Neto, ou afastados dos órgãos de comunicação ou ostracizados, a favor de gente mais "útil" ao poder, mesmo quando, ou principalmente quando, são de "direita" - nomear tudo isto -, é proibido no regime do canal único do "folclore transmontano" .

Seria interessante perguntar o que é que mudou para melhor, desde que Rangel fez o seu discurso, na "claustrofobia democrática"? Mudou, só que para pior. Os dois órgãos de comunicação que o primeiro-ministro atacou publicamente estão abatidos. O Jornal Nacional da TVI encerrou como espaço crítico do Governo, e o PÚBLICO está sujeito a uma campanha para mudar a sua linha editorial e o seu director. Somaram-se os assuntos tabu, a começar pelas investigações que envolvem o primeiro-ministro, como o caso Freeport e outros, em que ninguém se interroga como é que uma imprensa livre aceita tão grande condicionamento ao ponto de tornar "excessivo" quem tem coragem de falar. Fosse no Reino Unido ou nos EUA e veriam se era assim. É também porque há um coro de "folclore transmontano" que ninguém se incomoda em perguntar porque razão é que Portugal baixou de 16º para 30º no índice de liberdade de imprensa. Pelos vistos os Repórteres Sem Fronteiras acham que sempre há "asfixia democrática". Por cá, tudo a assobiar para o lado.

Mas nem sequer é o que se vê o que é o mais importante. O mais importante é o que não se vê, porque a patrulha dos dissidentes do "folclore transmontano" é feita em todos os azimutes, desde os blogues que fazem o dirty job, a começar pelos pagos pelo Governo, a acabar em operações políticas de monta como foi a doDiário de Notícias contra Cavaco Silva e o PSD. Gente cujo único pecado é não alinhar no coro do "folclore transmontano" é imediatamente sujeita a uma campanha de insultos. É, por exemplo, o caso de Paulo Tunhas, filósofo e co-autor de um notável livro com Fernando Gil, também cuidadosamente esquecido pela sua ruptura com o cânone, que cometeu o crime de "perceber", no melhor sentido, Manuela Ferreira Leite, um acto proibido no coro do "folclore transmontano", cantado "à esquerda" pelos amigos de José Sócrates e "à direita" pelos de Passos Coelho.

Estes exemplos vêm de uma pequena minoria das elites, e têm esse defeito, mas também têm uma vantagem. A vantagem é que estão em posição de perceber e falar do que se está a passar porque têm melhor condição económica, logo mais defesas. Mas seria profundamente errado pensarmos que é aqui que a "claustrofobia democrática" é mais grave. É no homem comum, que tem medo de perder o emprego, no pequeno empresário que teme perder uma encomenda porque refilou com as dívidas do Estado ou o fisco ou a ASAE, no funcionário público que sabe que tem que agradar ao chefe do PS, no jornalista que questiona opack journalisme é logo afastado da "política" por se suspeitar que "está feito com o PSD". É no homem que tem o direito de viver num país livre, com uma comunicação social crítica, com uma informação equilibrada, e nem sequer se pode aperceber até que ponto está a ser, todos os dias, manipulado com "folclore transmontano".

Historiador

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