Da importância do escândalo


Helena Matos

Público, 20091022

Arranjar uma polémica com a Igreja Católica é um investimento com risco zero e grande retorno mediático

José Saramago é um razoável escritor e um excelente divulgador da sua obra. Num tempo não muito distante, em que ele ainda não era Nobel e em que os demais escritores (ou melhor dizendo autores de livros pois ser escritor é uma coisa situada uns patamares acima) desdenhavam enfastiados das filas que o povinho fazia à espera de um autógrafo, já José Saramago passava horas em sessões de lançamento a perguntar às senhoras que apareciam com os seus livros debaixo do braço a quem queriam que o dedicasse. E uma vez ouvido o nome ele lá escrevia as frases que lhe ditavam. Mais, Saramago era assim antes do Nobel e continuou a ser assim depois do Nobel. Na Festa do Avante!, numa biblioteca remota ou num pavilhão polivalente, Saramago sempre teve claro que os livros para serem lidos têm de ser vendidos e que o escritor é o principal vendedor da sua obra. Não sei que queixas têm os editores de Saramago mas certamente que entre essas queixas não se conta o ele não se esforçar por promover os seus livros.

Nos últimos anos, desfeito o efeito que o Nobel teve como exponenciador das vendas dos seus livros e sem que das suas mãos saísse algo que cativasse tantos leitores quanto oMemorial do Convento, Saramago e o seu universo mais ou menos realista encontraram-se em concorrência com uns livros pejados de vampiros, códigos e irmandades que provavelmente para seu e certamente para meu espanto atingem vendas vertiginosas. Não sei se foi nesse momento que lhe ocorreu a ideia do escândalo mas a verdade é que na falta de um Sousa Lara que lhe possa dar motivos para se dizer discriminado, Saramago nos promete um escândalo por cada livro que faz sair. Como no mundo da cultura fica tudo calado à espera que outros digam a Saramago o que eles não ousam para não ficarem mal na fotografia e no da política ninguém está para ser apelidado de Sousa Lara, Saramago tem cada vez mais dificuldades em arranjar um escândalo. Ninguém quer um escândalo com Saramago e ele a precisar - ou a achar que precisa - de um escândalo. É aqui que entra a Igreja Católica ou ICAR como numa espécie de sinal distintivo alguns fazem questão de escrever. Arranjar uma polémica com a Igreja Católica é um investimento com risco zero e grande retorno mediático. Mais ou menos o inverso do que sucede quando, mesmo na dita livre Europa, se arranja uma polémica com religiões que cujos fiéis têm outro entendimento da tolerância. Veja-se o inferno terreno em que se transformaram as vidas de Salman Rushdie ou do director do jornal dinamarquês Jyllands-Posten após a publicação dumas caricaturas de Maomé e percebe-se que há polémicas e polémicas. Não admira portanto que José Saramago quando interrogado sobre se num próximo livro iria falar do Corão, tenha respondido: "Não tenho a intenção de abordar o Corão, tenho mais que fazer, estou a escrever outro livro que não será tão polémico como este".

Política e ideologicamente, não se esperava outra coisa de Saramago. Literariamente, faz muito bem, pois se deixar de perseguir os escândalos talvez se fixe na Literatura. E como já estou farta de tanto livro de cabalas e dragões, um bom romance de Saramago vinha mesmo a calhar. "Eu pergunto: "Nuclear por que não?"" - Desconheço o que terão respondido os presentes no Casino da Figueira da Foz quando há dias ouviram esta declaração de apoio à opção nuclear formulada sob a forma de pergunta pelo ex-Presidente da República Ramalho Eanes. Mas a reacção foi certamente bem mais pacata do que aquela que rodearia uma declaração semelhante há quinze ou vinte anos. O nuclear não só não gera hoje discussões apaixonadas em Portugal como surge quase como inevitável. Curiosamente no desfazer desse tabu detecta-se o protagonismo daqueles que detêm um poder não executivo, como é o caso dos presidentes da República: note-se que a opção pelo nuclear não só mereceu o apoio expresso do antigo Presidente Eanes como, nas últimas presidenciais, no debate travado por Cavaco Silva e Jerónimo de Sousa, ambos os candidatos consideraram a opção pela energia nuclear como uma hipótese que não podia ser excluída. Por contraste os primeiros-ministros ou candidatos a tal têm evitado até agora publicamente esta questão pois ainda não devem estar completamente esquecidas as atribulações que a opção pelo nuclear trouxe ao I Governo Constitucional liderado por Mário Soares.

Aliás entre os mais perplexos com a pacatez que rodeou esta conferência do general Ramalho Eanes no Casino da Figueira da Foz devem estar os cardeais portugueses. Por um daquelas ironias em que Portugal é fértil, a Igreja Católica portuguesa parecia ter feito no início deste ano do mesmo Casino da Figueira uma espécie de sala de imprensa. Logo em Janeiro, o cardeal-patriarca participou aí numa tertúlia onde entendeu por bem avisar as jovens portuguesas: "Cautela com os amores. Pensem duas vezes em casar com um muçulmano, pensem muito seriamente, é meter-se num monte de sarilhos que nem Alá sabe onde é que acabam." Um mês depois o convidado do Casino da Figueira foi o cardeal D. José Saraiva Martins que não só disse estar totalmente de acordo com a posição de D. José Policarpo sobre o casamento de católicas com muçulmanos como a propósito da homossexualidade declarou que a mesma "não é normal".

Não me espanta que as opiniões de D. José Saraiva Martins e de D. José Policarpo tenham aberto noticiários, pese essas opiniões em 2009 não obrigarem ninguém, nem sequer os católicos. O que me inquieta é que no mesmo ano de 2009 a opção pelo nuclear, que afectará todos nós não suscite grande interesse. É certo que o desempenho seguro das centrais nucleares, os desmandos políticos de boa parte dos países produtores de petróleo ou dotados de reservas de gás e o clima de terror apocalíptico criado pelo combate ao aquecimento global transformaram mediaticamente a energia nuclear de entidade satânica repositório de todos os perigos numa tecnologia santificada como amiga do ambiente. Mas daí a vê-la transformada em nota de rodapé vai um passo que até deve surpreender Deus, ou os cardeais por Ele.

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