O gajo
Público, 20091001
Não sei se, como contam os seus próximos, Mário Soares ainda se refere nestes termos a Cavaco Silva. Mas é importante esclarecer que chamar-lhe "gajo" não me parece nada depreciativo, tanto mais que o termo "gajo", na fulanização que tem implícita, dá conta daquilo que Cavaco Silva tem sido em Portugal: uma espécie de intruso, um tipo com quem volta e meia se esbarra e que suscita quase sempre uma pergunta meio irritada: "Mas o que quer este gajo?"
É preciso que se perceba que o espaço do poder governamental é em Portugal naturalmente socialista. Não por uma qualquer malfeitoria dos socialistas, mas sim porque foram os socialistas os grandes vencedores políticos e morais do momento que fundou os compromissos do regime, o 25 de Novembro de 1975. O socialismo que o PS prometia aos portugueses pareceu-lhes tão paternalmente bondoso quanto o Estado social anunciado por Marcelo Caetano, com a vantagem acrescida de se livrarem de que alguém os dissesse de direita ou estalinistas, pois se ser de direita permaneceu como algo de pejorativo, já ser de esquerda, desde que daquela esquerda delimitada pelo PS, tornou-se um traço distintivo pela positiva. A isto que já de si não é nada pouco juntou-se a extraordinária mais-valia da aristocrática concepção do poder dopater familiasdos socialistas portugueses, Mário Soares. Ver Soares a deslocar-se é talvez o que temos de mais próximo com o que terá sido a naturalidade aristocrática com que D. Carlos devia passear em Vila Viçosa. Mas Soares não trouxe para os socialistas portugueses apenas a concepção de que o poder lhes é naturalmente devido, cultivou-lhes o espírito de corte: há um séquito que lhe repete as graças, as conversas com os grandes do mundo, a maravilha dos quadros que lhe ornamentam as casas, a grandiosidade da bilioteca e, não menos importante, reage ao primeiro sinal de crítica àquele que definem como "pai da democracia". Aliás, uma das características mais comuns ao PS português é essa noção enraízada de família. Não por acaso o PS foi durante anos um partido de famílias cujos apelidos em muitos casos remontavam à I República e onde, ao contrário do que sucedia nas outras formações políticas à direita e à esquerda do PS, os filhos, desde a mais tenra infância, se reviam e revêem ideologicamente nos pais.
Por isso um dos momentos mais simbólicos das últimas eleições é aquele em que Soares terá passado, segundo a definição da propaganda do PS, o testemunho a Sócrates, lançando oslogan "Sócrates é fixe", adaptação desse outro "Soares é fixe" que fixa o momento em que Soares além de fixe foi também feliz e vencedor. É óbvio que Sócrates não é fixe - coisa que está longe de ser defeito! - e Soares não ignorará que aquele que definiu como seu sucessor não acerta uma única vez quando tenta falar dos livros que diz que leu ou dos filmes que diz que viu. Mas o testemunho que passou de Soares para Sócrates nada tem a ver com os gostos ou com as ideias, mas sim com a concepção do poder como coisa da sua gente.
Naturalmente Cavaco não tem um partido assim atrás de si (o que sendo uma notória fraqueza em momentos como o actual foi também o traço que lhe permitiu chegar a Presidente da República) e de alguma forma ele e Guterres foram os únicos que até agora ousaram enfrentar estestatu quo: Cavaco porque não se coibiu de ganhar eleições aos socialistas e Guterres porque não fez tudo o que estava ao seu alcance para manter os socialistas no poder, acabando por se demitir. Por isso, do ponto de vista "rosa", Cavaco nunca passará de um gajo e Guterres de um traidor. Quanto a Guterres, só o futuro dirá em que medida o PS lhe perdoará o pecado original de ter deixado o poder. O presente, esse, acontece entre o PS e o gajo. Ou mais institucionalmente falando, entre o Governo e a Presidência da República. Ou, se se preferir dar nomes às coisas, entre Sócrates e Cavaco Silva. Cavaco, que tem o imenso orgulho dos tímidos, aposta sobretudo em que a razão lhe será reconhecidaa posteriori, como aconteceu com o Estatuto dos Açores. Resta saber se Cavaco ainda tem tempo, pois na relação com os outros poderes não basta a um Presidente da República denunciar os seus motivos de indignação, como bem perceberia Cavaco Silva se lesse o discurso de renúncia que um Presidente da República, o general Spínola, redigiu nesse mesmo Palácio de Belém num dia 29 de Setembro, não de 2009 mas sim de 1974. É necessário que o Presidente da República, qualquer que ele seja, tenha consciência do seu tempo de acção. Coisa que Soares teve quando percebeu que podia avançar contra o então primeiro-ministro Cavaco Silva e que teve sobretudo Jorge Sampaio naquele arco temporal que vai do momento em que deu posse a Santana Lopes até àquele instante em que o demitiu. Para já Cavaco tem razão no essencial e Sócrates tem o tempo (e a corte) a seu favor. Mas nada disto é suficiente para saber quem vai ganhar e sobretudo para que o país confie nas instituições.Jornalista O director do Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico (Igespar), Elísio Summavielle, propôs que o Museu do Côa albergue também arte contemporânea, dado que as própria gravuras do Côa são arte. Logo veio a Associação dos Arqueólogos Portugueses contrapor que "colocar arte contemporânea no Museu do Côa é desvirtuar o objectivo para o qual foi criado o museu". Como já não estamos em 1994 o país não fica tolhido quando ouve o verbo desvirtuar e muito provavelmente o Museu do Côa terá também arte contemporânea, antiga, moderna... Enfim, terá o que sucessivamente se for achando necessário para levar as pessoas àquele espaço, que, por si só, se arrisca a ser mais um elefante branco ou mais arqueologicamente falando um auroque branco. Recordo que em 1994 se anunciava que 300 mil turistas iriam anualmente rumar a Foz Côa para conhecerem as ditas gravuras. O país então achava-se tão rico que deitou alegremente fora o dinheiro já investido na barragem. Alguém que questionasse a desmesura deste êxtase místico com as inscrições do Côa e o desprezo por aquelas outras que simultaneamente eram submersas em Alqueva era tratado no mínimo como troglodita. No Côa apareceram poucos turistas e não consta que algum deles tenha aconselhado a experiência a quem quer que fosse.
Na míngua de turistas encomendaram-se filmes que foram justificados como a derradeira tentativa de chamar a atenção internacional para o Parque Arqueológico de Foz Côa e construiu-se o museu. Dada a desmesura da coisa - o Museu do Côa será o segundo maior de Portugal, logo a seguir ao de Arte Antiga, em Lisboa -, o óbvio tornou-se incontornável: o que vai lá para dentro que justifique uma viagem até ali? Arte contemporânea, diz o Igespar Por mim creio que poderiam também dedicar uma sala ao dogmatismo e às manobras de propaganda. Com o próprio processo do Côa já tinham material que lhes chegasse.
Comentários
para o poder socialista,
sendo um pouco efusivo
este termo simplista.
O socialismo aristocrático
instalado nesta democracia ,
tem no poder “socrático”
um exemplo de autocracia.