Prova de vida
A não perder este artigo de Vasco Graça Moura onde ele dá conta com “alguma dificuldade em exprimir estas coisas” do impacto do testemunho da vida de Maria José Nogueira Pinto. Onde se vê a diferença entre um discurso e um testemunho…
Prova de vida
DN 2011-07-13 VASCO GRAÇA MOURA "Terminal", dizia-me alguém há cerca de dois meses, "- Ela está em estado terminal". Vi-a chegar com o marido a esse almoço de amigos, em que participou discreta e aparentemente bem disposta, na sóbria gravidade da sua postura algo emaciada, conversando sem aludir à doença, nem à inquietação ou ao sofrimento por que passava. Era assim que aliava estoicismo e bom gosto. Tinha uma maneira directa e inteligente de abordar as questões, encarando as coisas de frente, dizendo o que pensava, apresentando os seus argumentos com total clareza. Era uma mulher sem ambiguidades nem falhas de coragem e todos os que a leram regularmente nesta página podem testemunhá-lo.
A sua vida familiar, a sua carreira profissional, o seu percurso político, as qualidades de que deu provas, a sua energia, a sua capacidade de análise e de decisão, os êxitos do seu trajecto, as suas posições no tocante à sociedade e ao mundo, tudo isso já veio referido em comentários dos mais diversos quadrantes.
A sua autobiografia sumária, num texto concluído e aqui publicado, no DN, no próprio dia da sua morte, é um dos documentos humanos mais belos e pungentes que me tem sido dado ler nos últimos tempos. Pensando bem, creio mesmo nunca ter lido nada assim: alguém escreve na primeira pessoa do singular na iminência da sua própria morte, quase em tempo real, com uma autenticidade, uma serenidade e uma coragem excepcionais e desarmantes!
É com alguma melancolia que me ponho a pensar nessa relação, afinal transparente, entre saber viver e saber morrer. Como quase toda a gente da minha geração em Portugal, eu tive uma educação católica, embora não seja crente desde a adolescência. Não sinto necessidades de nenhuma espécie de incursão na esfera do transcendente, limitando-me a integrar-me nos chamados valores da civilização cristã e a fruir o que deles possa ecoar nas grandes criações do espírito humano, em especial na literatura e nas artes.
Apesar desse laicismo, impressionou-me profundamente a maneira como ela transfigurou a sua educação católica numa experiência pessoal e muito intensa de intimidade com o sagrado e esta em código de conduta moral e norma de actuação prática na vida de todos os dias. Fiquei com a ideia de que a crença cristã foi por ela interiorizada de tal maneira que tornou cada acto da sua vida numa profissão de fé e num exercício de alegria íntima. Isto é muito raro num país em que a tradição religiosa dominante, a católica, se fica as mais das vezes por rituais esvaziados de sentido e pelo mero papaguear do que se aprendeu na catequese.
Ficou-me também a impressão de que a palavra de Deus em que acreditava - e por isso queria, sabia e conseguia vivê-la como alimento espiritual quotidiano - lhe era, ao mesmo tempo, condição e explicitação constantes de uma plena realização pessoal, na própria ascese que procurava para o seu itinerário, na compreensão tolerante do próximo, nos valores da solidariedade e da cidadania, na firmeza com que defendia os princípios que para ela valiam na vida pessoal e na sociedade.
Fazia isso com a enorme naturalidade de ser uma mulher bem do seu tempo, culta e desempoeirada, aberta à modernidade e, sempre que necessário, questionadora da modernidade, de convicções solidamente assentes e pensamento estruturado, de desassombro nas atitudes e coragem sem limites na assunção de responsabilidades, e também com um trajecto de experiências acumuladas de que soube utilizar as mais duras e amargas para a inimitável têmpera da sua personalidade.
Tenho alguma dificuldade em exprimir estas coisas, mas creio que ela soube forjar uma matriz de confiança nessa via anímica e espiritual que, para os eleitos, os happy few, é em si mesma um caminho de esperança e uma proposta de comunhão e partilha, em que o eterno e o temporal se articulam de modo indissociável, seja qual for o lugar de exílio em que o ser humano se sinta a existir.
Por isso, ao dizer "o Senhor é meu pastor, nada me faltará", nas suas palavras finais, ela citou textualmente o mesmo salmo 23 de que já tinha deixado entrever um dos versículos quando disse que, "graças a Deus", nunca tivera medo: "Mesmo que atravesse os vales sombrios, nenhum mal temerei, porque estás comigo."
Esta densa memória que vamos guardar de Maria José Nogueira Pinto é a sua prova de vida.
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