Assim não dá
Público 2011-07-21 Helena Matos
Tenhamos medo sim do dia em que a classe média perca não o medo mas sim a vergonha de não cumprirMas seja por isso ou pelo seu contrário, o que para o meu caso conta é a pretensão, ou melhor a minha exigência, de deixar de ser classe média. Quero que o Estado me declare rica ou pobre. Mas média não. E não adianta contrapor a esta minha reivindicação o argumento de que estas coisas não se determinam por decreto. Isso seria bem observado caso Portugal fosse um país razoável. Mas como bem sabemos não é. Não se instituiu por decreto que eram gratuitos o SNS e a escola pública? Como é óbvio, não são mas isso não impede que todos os dias sejamos bombardeados com a exaltada defesa do gratuito, muito particularmente nos microfones da TSF, que trocou a sua encarnação anterior do Todos Seremos Fedayins por um igualmente místico e arrebatado Todos Socialistas Finalmente.
Mas voltemos ao porquê desta minha reivindicação. Os ricos e os pobres têm neste bendito país um estatuto mais protegido que os linces da Malcata (quando havia linces na Malcata). Por exemplo, não se pode privatizar a RTP porque isso agravará a situação da TVI e da SIC. Não duvido que a privatização da RTP possa causar um tumulto no mercado susceptível de tornar menos ricos os principais accionistas da SIC e da TVI que quiçá passariam a fazer parte da classe média, coisa que de modo algum gente tão informada está disposta a ser. Não porque tenham medo de perder luxos (coisa que raramente tem a ver com riqueza) mas porque muito prosaicamente os ricos sabem que a partir do momento em que deixam de ser ricos, ninguém mais se importará que um qualquer decreto perturbe a vida das suas empresas. Assim, se alguém da classe média viesse alegar que a privatização da RTP o poderia levar à falência, só obteria como resposta um prosaico "azar..." e mandavam-no refazer os orçamentos, cortar, investir etc. Em resumo, diziam-lhe que se arranjasse, aguentasse e pagasse na data marcada como o Estado ordena invariavelmente à classe média.
E portanto o Estado que em relação aos ricos tem sempre de equacionar as medidas também não deixa os pobres sem consolo: os pobres têm sempre de ser ajudados, vão beneficiar de um programa e têm inevitavelmente direito a um conjunto de medidas. É certamente assombroso que andando o Estado português há tantos anos a ajudar os pobres alegadamente para que estes fiquem menos pobres tenha acabado precisamente a obter resultado contrário mas isso não é assunto para esta crónica. Por agora o meu objectivo é simplesmente expressar o meu intuito de administrativamente me tornar pobre ou rica para assim deixar de fazer parte do grupo a quem o Estado manda aguentar e pagar os Estaleiros de Viana, os custos da insularidade, as televisões públicas e privadas. As portagens das Scut, os espantosos contratos celebrados pelo Estado com os concessionários das Scut e os pórticos destruídos nas Scut. Os governadores civis, os maquinistas da CP, o Metro Sul do Tejo (com tanto milhão de prejuízo sairia mais barato oferecer um automóvel aos pouquíssimos utilizadores desse metro), os bairros sociais que em dois meses passam a problemáticos, o pessoal de cabina da TAP, os especialistas na acumulação do RSI com pensões, subsídios, abonos, apoios, complementos e bonificações. Não quero mais fazer parte desse grupo que paga as hipotecas aos bancos e respectivas comissões mais as universidades onde estudam muitos daqueles que acham que o melhor será partir as montras dos bancos e, como não podia deixar de ser, ainda acaba a pagar também as montras partidas dos mesmos bancos.
Todas essas empresas e pessoas ricas e pobres estarão cheias de razão mas esta razão, ao contrário do que acontece na Filosofia, não se sustenta no pensamento mas sim na existência de dinheiro que literalmente a sustente. E esse dinheiro vem esmagadoramente do bolso da classe média e muito particularmente daquele meio milhão de contribuintes que, segundo dados do INE referentes ao IRS de 2007, ganhavam, em números redondos, entre 18 mil e 40 mil euros por ano e pagavam quase metade do IRS apurado nesse ano.
Por isso o busílis da situação não está naqueles folclóricos que acampam nas praças das cidades e muito menos nos mascarados que atiram pedras às montras das lojas. O nosso maior problema pode acontecer no dia em que os tolos do costume deixarem de pagar como de costume e exijam uma impunidade nas suas contas semelhante à tolerada aos muitos ricos e atribuída como privilégio a quem administra o Estado. Afinal um desvio, mesmo que ínfimo, nas contas pessoais ou das empresas pode ser uma tragédia além de um crime se as contas tiverem a pequenez da classe média mas se as contas forem públicas tudo se resume a uma troca de acusações políticas. O Estado é em Portugal paternalista com os pobres, servil com os ricos, absolutamente indulgente consigo mesmo e de uma exigência sem limites para com aquele grupo a que põe ao peito a medalha da classe média mas em que na prática se incluem agregados familiares com rendimentos mensais a partir dos 2 mil euros.
Os jornalistas sonham com revoluções requentadas do marxismo, com muitas praças cheias de gente, montras partidas, acampamentos, capuzes e slogans. Mas aquilo que pode colocar literalmente o nosso mundo em causa não é essa gente. Tenhamos medo sim do dia em que a classe média perca não o medo mas sim a vergonha de não cumprir e ao anúncio de mais impostos responda "Assim não dá". Ensaísta
Comentários
Estou de acordo com quase tudo mas lembro que, quem ganha menos de 1.500 ou 2.000 também paga bem.
Subscrevo o que escreve em relação à subserviência no que toca aos ricos e à subsidio-dependência de muitos ditos os pobres.
Qualquer dia justifica-se o "NÃO PAGAMOS IRS" enquanto não pagarem todos quantos podem e devem pagar bem e não acabarem estes privilégios para os que mais ganham/lucram, quer na vida ativa, quer na reforma.
José Ribeiro