Um tempo de suspeita

JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2011-07-25
A base da sociedade actual é a desconfiança. Os cidadãos não acreditam uns nos outros. Todos dizem haver uma crise de valores e coleccionam-se histórias de fraudes, abusos e ameaças. Vivemos um tempo de suspeita.
Atribuímos isso à sociedade aberta, heterogénea, para mais em crise, mas a explicação não colhe. Primeiro, porque crises sempre houve. Além disso, as tradições permanecem, a religião é tão influente como sempre foi e as pessoas não são mais ou menos egoístas que antes. O problema não está nos valores, mas nos critérios.
A dúvida colectiva nasce não de pessoas concretas, mas da atitude de fundo. Cada um acha-se honesto, e aqueles que conhece são pessoas de bem. Apesar disso, garante que ninguém respeita os valores. Suspeitamos não dos próximos, mas dos outros em geral.
A origem da atitude está no preconceito, que tem a vantagem de nos evitar de pensar. Durante séculos, sempre se soube que em todos os grupos e condições havia pessoas boas e más. Era preciso julgar com cuidado. Mas nós fomos educados na convicção pseudocientífica da "luta de classes", forma operacional de xenofobia. Este tempo da técnica acredita que mecanismos e estruturas se sobrepõem a pessoas e comportamentos, fazendo tudo mau.
Repudiamos não a mentira de alguns políticos, mas a classe política mentirosa. O problema está menos nos banqueiros desonestos do que no sistema bancário que elimina a honestidade. Não criticamos os erros das agências de rating, mas a sua existência, mesmo sem saber bem o que fazem; os juízos são automáticos.
Esta atitude justifica os preconceitos mais boçais. Todos sabem que os maridos enganam as mulheres, os comerciantes empolam os preços, os professores tomam alunos de ponta. Antes de sabermos os pormenores de qualquer história dessas, já pronunciámos o veredicto. Só notamos a terrível injustiça quando somos vítimas do raciocínio.
Aliás, já vamos na segunda geração de preconceitos. Acreditamos no mito de que os antigos achavam as mulheres inferiores. Nós, sendo igualitários, discriminamos não as mulheres, mas os homens acusados automaticamente de discriminação que não cometeram. E ninguém se dá ao trabalho de considerar a realidade, onde há mulheres inferiores e homens machistas, mas poucos.
No meio da suspeita e do preconceito, o elemento que desaparece é a honra. Ninguém confia na honestidade alheia e espera-se sempre o pior. Todos se consideram pessoalmente honrados numa sociedade de bandidos. Para a dominar, a solução técnica tinha de ser um mecanismo: a regulação.
Na falta da honorabilidade, brama-se pela lei. Trocamos o juízo moral pela ponderação da legalidade. Normas e estatutos, fracos substitutos da suspeita virtude alheia, penetram nos campos mais íntimos e insólitos. A consequência é a inflação desenfreada de leis e regulamentos, que estrangula a vida social e atinge paroxismos de ridículo.
A lei não pode funcionar sem honra porque, em si, é romba e míope. Só vê branco e preto. Não pode fechar os olhos, dar o desconto, ter benevolência. Ou se comete o crime ou não se comete, tendo como única gradação a severidade da pena. Até castiga quando quer ajudar, ao multar a falta de cinto de segurança.
Assim o totalitarismo do mundo quadriculado do direito aumenta ainda mais a suspeita social. Surge então um dos debates mais estúpidos da história, entre neoliberais e intervencionistas, que se acusam mutuamente de todos os males sociais, num suposto confronto entre Estado e mercado, como se qualquer deles sobrevivesse sem o outro.
Uma sociedade civilizada é o equilíbrio entre honra, lei e liberdade. Na falta de uma, as outras não funcionam. O tempo da suspeita esqueceu a primeira e tenta viver com as outras duas em confronto, onde o propósito da lei não é defender a liberdade, mas restringi-la; a finalidade da liberdade não é respeitar a lei, mas desafiá-la. Esta é a verdadeira crise actual, manifestada nos múltiplos problemas da Justiça, Educação, Saúde, etc.. O nosso real problema não é político, financeiro ou económico. É a desconfiança.

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