O nome das coisas

PÚBLICO, 16.07.2009, Helena Matos

Cada época tem as suas coisas com outros nomes. Nos anos 60 o adultério masculino era designado por "ter uma amiga"


Já o tinha pressentido mas tornou-se-me óbvio quando os vi tocar e cantar num daqueles programas televisivos que supostamente animam o nosso Verão. Respondiam pelo nome de Ciganos de Ouro. Os apresentadores do programa não paravam de repetir, entusiasmados, que os homens que ali cantavam e tocavam eram os Ciganos de Ouro e os ditos assim referidos estavam não só contentíssimos com tal definição como pareciam convictos de que a mesma era uma mais-valia para a sua actividade cantante.
Fora do domínio musical e de umas abordagens sociológicas sobre a pobreza, jamais alguém pronunciará hoje publicamente o termo cigano de forma tão descontraída quanto aconteceu naquele programa.
Cada época tem as suas coisas designadas por outros nomes. Nos anos 60 o adultério masculino era designado pela extraordinária expressão "ter uma amiga", o que, entre muitas outras questões sobre os detalhes práticos da coisa - já imaginaram a disponibilidade que exige ter pelo menos duas casas com uma mulher em cada uma delas? -, deixa supor que a relação com a "amiga" era assim como um casamento feliz, sem discussões. Coisa de amigos, portanto. Numa pecha que durou até aos dias de hoje, não se morria de cancro mas sim de doença prolongada, sendo certo que um cancro pode ser bem menos prolongado que muitas outras doenças que igualmente nos levam à morte.
Antes de chegarmos ao politicamente correcto das pessoas portadoras de deficiência - expressão infelicíssima que faz de cada deficiente uma espécie de transportador de deficiências - ou dos pretos que passaram a negros e depois a africanos, apesar de nascidos e criados em Portugal, tivemos a fase em que se procurava criar igualdade económica e social através da linguagem: as crianças deixaram de reprovar ou chumbar, passando a ficar retidas, e as companhias de transportes, com a aviação à cabeça, deixaram de ter 1.ª e 2.ª classes. O pior é que, em vez de criarem um serviço igualmente bom para todos, resolveram chamar executivos a quem antes viajava em 1.ª e turistas a quem segue no que era a antiga 2.ª. Enfim, já não basta não se ganhar o suficiente para se viajar com as pernas esticadas, ainda se tem de ouvir que vamos de férias, armados em descontraídos veraneantes!
Tão hipócrita quanto a classe turística das companhias de aviação só conheço o termo "problemático" quando aplicado a equipamentos colectivos como escolas, carreiras de transportes públicos ou bairros. Devidamente traduzido para a realidade, um bairro ou uma escola problemáticos são espaços frequentados por pessoas que as autarquias e as políticas ditas de apoio aos desfavorecidos mantêm acantonadas nuns bantustões sociais, pois existem poucas estruturas mais segregacionistas que um bairro social ou tutelado pelos serviços públicos. Neste nosso falar dando outro nome às coisas, a passagem de bairro social a problemático acontece quando os desordeiros, que entretanto passaram a impor as suas regras no bairro, praticam alguns desmandos sobre aqueles que, de todo em todo, não podem evitar frequentá-lo, como os professores, os polícias ou os motoristas dos transportes públicos. Em resumo, um bairro problemático é aquele em que a agressão a um polícia é relatada não como uma agressão efectuada por uma ou mais pessoas mas sim como um incidente entre populares e a polícia.
a I) As caras novas. Sendo de bom tom criticar o cinzentismo dos deputados e o seu apagamento face às lideranças dos respectivos grupos parlamentares, a verdade é que, desde o modo de funcionamento do parlamento à própria cobertura informativa da Assembleia da República, nada parece ser propício à figura dos deputados independentes. Por exemplo, quando foi a última vez que ouvimos falar de uma intervenção de Luísa Mesquita?
Convém recordar que o caso Luísa Mesquita nasceu em 2006, quando a então deputada pelo PCP recusou ceder o seu lugar no parlamento às "novas caras" que, segundo o Avante, iriam renovar o Grupo Parlamentar do PCP. Este partido procedia então a uma substituição de deputados e, se Abílio Fernandes e Odete Santos aceitaram ceder os seus lugares, o mesmo não aconteceu com Luísa Mesquita. Em 2006 o PCP ainda falava, no Avante, dos valiosíssimos contributos de Luísa Mesquita para a vida parlamentar, mas à cautela retirou-lhe a confiança política e passou-a das comissões de Educação e Negócios Estrangeiros para a Comissão de Saúde. Em 2007, era óbvio que Luísa Mesquita não ia ceder o seu lugar de deputada. O resultado veio rápido e inquestionável, como é habitual no PCP: Luísa Mesquita foi expulsa do partido e desde aí até agora manteve-se no parlamento como deputada independente "não inscrita". Pese ter continuado a intervir na AR e embora a sua área de intervenção por excelência, a educação, tenha sido política e socialmente muito sensível tanto em 2008 como em 2009, a verdade é que praticamente deixámos de ver e ouvir Luísa Mesquita. As "caras novas" que o PCP colocou na AR não se destacaram em nada e a voz dos comunistas em matéria de educação deslocalizou-se da AR para a FENPROF, ou se preferir passou da cara antiga de Luísa Mesquita para a não menos antiga cara de Mário Nogueira. Enfim, o discurso das "caras novas" é como o velho anúncio dos candeeiros bem bonitos, modernos e originais: entra no ouvido e, devidamente interpretado, quer dizer apenas que as direcções resolvem mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma. Bem mais séria e sem fundo musical é a dúvida que resulta deste caso: qual o espaço quer no parlamento quer na comunicação social para os deputados independentes?

II) Os valiosíssimos serviços. Politicamente falando, esta expressão quer dizer que está na hora de o visado por tais encómios sair de cena. Acontece, porém, que às vezes - poucas, é certo -, os protagonistas dos valiosíssimos serviços trocam as voltas a quem achava que lhes ditava o fim da brilhante comissão de serviço. É este o caso do PSD com Manuela Ferreira Leite. A senhora mais as pérolas resolveriam uns problemas de calendário a alguns protagonistas e depois seria devidamente mandada para casa com vários discursos sobre a sua generosidade, dedicação e outra qualquer qualidade que reforçasse a ideia de que chegara o momento da liderança "a sério".
Acontece que existe um dado com que muitos, sobretudo no PSD, não contaram: Manuela Ferreira Leite parece estar a gostar de ser líder. A septuagenária, como ainda há pouco lhe chamavam, está mais livre que a maior parte dos seus colegas de partido: já fez profissionalmente o que tinha a fazer e, ao fim de todos estes anos na política, não deve temer que lhe vasculhem o passado. Ser líder pode ser não o valiosíssimo serviço que alguns esperavam que lhes prestasse, mas sim o projecto de quem, pessoalmente, não tem nada a perder.

III) Os piratas. Quem são afinal estes piratas contra cujas frágeis embarcações mandamos fragatas? Chamamos-lhes piratas porque não é conveniente chamar-lhes terroristas. Mas, para lá da designação em si mesma, os piratas da Somália desmontam outros dos nossos artifícios de linguagem, nomeadamente o da condenação dos combates assimétricos. Aquando da entrada das forças israelitas na faixa de Gaza tornou-se quase obrigatório condenar os meios desproporcionados usados pelo exército de Israel, notoriamente melhor apetrechado que o Hamas. Dado que os defensores desta tese, pelo menos publicamente, não se propunham armar o Hamas, supõe-se que pretendiam que Israel recorresse a técnicas e armamento semelhantes às do Hamas. O resultado seria um desastre óbvio para ambas as partes. Tal como seria se os países da UE, a par da Rússia, da China e dos EUA, mandassem para a Somália barquinhos equivalentes aos dos ditos piratas.
Como é evidente, o recurso aos meios desproporcionados tem sido relativamente eficaz no que respeita a manter os piratas longe dos navios. Aliás, para lá da desproporção de meios não existem muitos outros argumentos, já que em vários países ocidentais os legisladores entenderam que estes crimes não existem e, como tal, não se podem deter os piratas e muito menos julgá-los.
Enfim, leiamos o Salgari para perceber melhor o que fazem as nossas fragatas na Somália, pois o nosso ministro da Defesa, que parece ter tomado a peito passar incógnito neste Governo, retirou por breves instantes o manto da invisibilidade e deu uma entrevista, mas sobretudo para declarar que os alunos esperam por ele.

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