'Burka' e tolerância
DN 20090706
João César das Neves
No passado dia 22 de Junho, pela primeira vez desde 1875 um presidente francês discursou no Parlamento. Nicolas Sarkozy aproveitou a oportunidade para uma intervenção inteligente e inspirada sobre o momento político (www.elysee.fr/documents). Admitindo a gravidade e a incerteza que nos rodeia, deu uma visão positiva, garantindo que "nada será como dantes (...), a crise torna-nos mais livres para imaginar um novo futuro". Está convencido de que "o mundo depois da crise será um mundo onde a mensagem da França será mais bem ouvida e mais bem compreendida (...). O modelo francês tem de novo a sua hipótese".
Que mensagem e modelo são esses? Pouco adiante, Sarkozy mostrou que se trata da mais tacanha intolerância e incompreensão. Muito aplaudido, o Presidente afirmou: "A burka não é um símbolo religioso, é um símbolo de servidão, é um símbolo de abaixamento. Quero dizer solenemente, ela não será bem-vinda no território da República."
A tolerância só tem significado quando enfrenta algo intolerável. Para aceitar o que consideramos admissível não é preciso esforço. Claro que a tolerância tem limites e há muita coisa que não devemos permitir: crime, abuso, injustiça. A discriminação das mulheres e, pior ainda, a sua servidão e abaixamento são evidentemente intoleráveis. Mas o Parlamento e Presidente franceses não estão a tratar da opressão feminina. Aliás, parecem bastante indiferentes aos efeitos que as suas palavras e acções poderão ter sobre as pobres mulheres que dizem defender. Como passarão a viver as raparigas muçulmanas se a burka for proibida em França? Certamente Sarkozy não sabe a resposta.
Aquilo que tem vindo a ocupar os legisladores franceses é um símbolo, como admitiu o Presidente. Um símbolo que ele afirma não ser religioso mas ter um significado particular. Evidentemente, esse não é o significado que o mesmo sinal tem para quem o usa. Existe escravidão explícita no mundo muçulmano, mas esses não usam burka. Para um árabe a escravidão tem outros símbolos.
O mais curioso na posição de Sarkozy e dos deputados é não entenderem que a sua é precisamente a mesma posição que fez nascer a burka. Se substituirmos "dignidade da mulher" por "decência feminina" e "abaixamento" por "deboche", é fácil imaginar um qualquer responsável afegão a justificar literalmente nos mesmos termos a recusa do traje ocidental. Evidentemente que não concordamos com essa conclusão, mas tolerância é aceitar aquilo com que não concordamos. As autoridades muçulmanas ao imporem a burka mostram falta de tolerância. Tal como as autoridades francesas o farão se vierem a proibir a burka.
Mais irónico é este debate realizar-se à volta de uma questão de vestuário, precisamente o tema onde a liberdade de costumes se começou a expressar na contemporânea. Há cem anos não passava pela cabeça de ninguém que um homem sério saísse à rua sem chapéu e bengala ou que as damas mostrassem o tornozelo. Fardas e uniformes eram omnipresentes em todas as classes. Os filhos dessa geração afirmaram a sua autonomia precisamente pela sua aparência exterior. Cabelos compridos, roupa desalinhada, calças de ganga, minissaias pareceram como combates importantes no caminho da liberdade. Agora os franceses, ao proibirem a burka, pensam estar no mesmo combate. Mas as batalhas antigas eram contra as proibições, não pela imposição de novas proibições.
O problema é mais vasto do que parece. Como Sarkozy com a burka, o Parlamento Europeu e o Governo português estão empenhados há anos em limitar a vida a fumadores, automobilistas, pais e cidadãos com as melhores intenções. Esquecem que todas as ditaduras, mesmo ferozes, sempre se justificaram com o bem dos cidadãos. Salazar, Franco, Mugabe, Chávez e até Hitler, Estaline, Mao e Pol Pot sempre disseram estar empenhados numa sociedade melhor. O mal deles não era cinismo e hipocrisia, nem estava tanto nas finalidades, mas na arrogância e tacanhez que o seu caminho implicava. As tais sociedades ideais nunca apareceram. Só ficou o sacrifício da liberdade.
João César das Neves
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