Os artistas desunidos
Helena Matos
Público, 20090723
No ano da graça de 2009 um espectáculo gera polémica e terá mesmo estado para ser suspenso, em Portugal, porque o texto critica, pasme-se!, um encenador. Mais precisamente um grupo de actores pegou no texto do manifesto anti-Dantas de Almada Negreiros e adaptou-o ao século XXI. No lugar de Júlio Dantas está agora Ricardo Pais. Vai daí nasce não um escândalo, coisa que precisa de público, mas na falta dele uma sucessão de declarações e contradeclarações que não sei porquê me lembra as sessões protocolares de cumprimentos no Palácio da Ajuda: o director artístico do Teatro Nacional D. Maria II, Diogo Infante, afirma que já manifestou a sua solidariedade a Ricardo Pais e declara-se consternado. Os responsáveis do Opart, entidade que gere o São Carlos, também estão "consternados", pois na sua opinião "Ricardo Pais é uma referência na cultura portuguesa" e declaram ainda no PÚBLICO de ontem que "era demasiado tarde para alterar a programação".
Para ser sincera tenho de dizer que não me interessam muito as razões que levaram estes actores a estabelecer esse paralelo entre Júlio Dantas e Ricardo Pais. O que eu queria mesmo era um pretexto para falar do Dantas e sobretudo desmanchar aquele sorrisinho consensual, género "tão moderninho que eu sou!", que nasce quando o nome do dito Dantas é pronunciado.
Durante anos o que conheci de Júlio Dantas foi o que dele escreveu Almada Negreiros. Um trabalho sobre o primeiro filme sonoro português, A Severa, fez-me interessar pela figura do tão ridicularizado Dantas.
Não foram as excelentes letras dos fados que me levaram a considerar que talvez o Dantas não fosse apenas o boneco que dele fizera Almada. Foram sim umas cartas. Mais propriamente as cartas que escreveu a um preso de seu nome José Carlos Amador Rebelo. Até ao dia 6 de Fevereiro de 1931, Amador Rebelo era uma figura conhecida nesse meio cultural que anunciava ir revolucionar e organizar o cinema português em moldes modernos. O que o levara a esse mundo foi o seu talento não para o cinema mas sim para arranjar dinheiro. Quando Leitão de Barros avança para a realização do primeiro filme sonoro português, a Sociedade Universal de Super Filmes, produtora da fita, procura Amador Rebelo, que garante boa parte do capital de A Severa. Acontece que desgraçadamente o dinheiro não era de Amador Rebelo mas sim do BNU, onde Amador Rebelo tinha o invejado cargo de inspector-geral e de onde desviara o dinheiro para financiar A Severa. Às onze da noite do dia 6 de Fevereiro de 1931, João Ulrich, então director do BNU, entrou no Torel para apresentar queixa por desfalque contra Amador Rebelo. Desde esse momento a grande preocupação da gente moderna da cultura e do cinema foi desvincular-se desse homem a quem até há uns dias enviavam telegramas pedindo dinheiro para fazerem a sua obra: "A escola Alves Reis, em cuja árvore genealógica entronca José Amador Rebelo, seu jovem e aproveitado discípulo deve ser expropriada e arrasada" - lê-se na revista Cinéfilo escassos dias depois da denúncia do BNU.
Amador Rebelo seria preso e julgado. E é aí, na cadeia, que entra o nome de Júlio Dantas, pois, ao contrário de outros, fossem eles cineastas, escritores ou artistas muito mais modernos, revolucionários e tidos como menos oficiosos, Júlio Dantas não se esquece de Amador Rebelo e escreve-lhe para a cadeia procurando encorajá-lo.
Certamente efeminado e postiço como lhe chamou Almada, vaidoso e egocêntrico como o descreveu pitorescamente Marcelo Caetano, a verdade é que Júlio Dantas é também o intelectual que desempenhou com qualidade os cargos que teve e o homem que não fez de conta que não conhecia um amigo e que, nos anos 20, se opôs ao grupo moderníssimo de radicais que pretendia retirar duma livraria do Chiado exemplares das Canções de António Botto.
Júlio Dantas tem representado convenientemente o papel do intelectual em que literal e historicamente falando é moderno malhar mas a vida (e no caso de Júlio Dantas a própria morte) e a sua teia de compromissos, fraquezas, glórias e princípios é sempre bem mais complexa do que as certezas inscritas nas frases dramaticamente sonoras e frequentemente belas dos manifestos.
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