Memórias
DN 20090702
Maria José Nogueira Pinto
Quando aparecia, trazia sempre um livro. Eu era criança mas recordo-a, nítida e precisa, por causa dos livros. Eram escritos por ela e isso, só por si, tornava-a distinta de todas as outras pessoas. Um dia deu-me A Fada Oriana e na primeira página, a mais branca e despojada, escreveu o meu nome e assinou o seu, numa caligrafia aérea.
Passaram já cinco anos sobre a morte de Sophia de Mello Breyner Andersen e este meu escrito mais não é que uma breve evocação, atar as pontas soltas da memória, desembaciar o tempo, lembrar através dela, ainda e também, a pesada contabilidade de outros mortos, de um tempo mais longínquo, em que a sua pressentida escrita depurada e a sua geografia poética ainda a não tinham transformado num bem comum e universal.
Os Natais, as festas de família mais íntimas, os nascimentos e as mortes, traziam Sophia de volta à nossa casa do Campo Grande, onde vivera algum tempo da sua juventude. Cresci a ouvir as histórias dessa época, em que a bisavó acompanhava pela rádio o relato da guerra, com um grande mapa aberto sobre a mesa e pequenas bandeirolas representando as forças em conflito. Na nossa família, marcada por fortes figuras femininas, a sua passagem deixou um rasto lendário que cheguei a atribuir ao gosto fantasioso que nos foi caracterizando e à tendência efabuladora com que cada geração se entretém a compor o presente. Quando Maria Cacho, a costureira alentejana, me dizia " a menina parece a sua tia que uma vez, quando o namorado tocou à porta, abalou para a rua com os alfinetes e tudo!" eu não acreditava completamente. A propósito de guarda-chuvas contava-se sempre a mesma história: no dia em que se apresentou pela primeira vez na Faculdade de Letras chovia muito. A minha bisavó emprestou-lhe um chapéu mas, como Sophia fosse muito distraída, encheu-a de recomendações para o não perder. Quando chegou à faculdade procurou a pessoa que lhe pareceu mais idónea - um senhor de uma certa idade -, dirigiu-se a ele e disse-lhe: "Faz o favor de me guardar o meu guarda-chuva?" O senhor em causa era o mesmíssimo reitor…
Também se sabe com precisão em que quarto se fechava para ouvir o silêncio e da janela olhar o jardim. Creio que aí terá escrito aquele poema que começa assim: "Atravessei o jardim solitário e sem lua…". O nosso jardim era especialíssimo, misturando uma megalomania inocente de buxos franceses com devaneios românticos de parterre de amores--perfeitos, suficientemente grande, labiríntico e misterioso para permitir todo o tipo de evasões. Segundo a tradição oral esse foi um tempo de oiro, de festas e tertúlias, amizades fraternas e cumplicidades que resistiram às muitas voltas da vida.
Mais tarde, aproveitei todas as ocasiões em que estava com ela para repor as memórias, os factos, as cronologias. Mas foi após a morte da minha tia Maria, irmã da minha mãe, a propósito de um In Memoriam que então promovi, que ela me enviou um texto muito particular. A minha tia fora, a seu modo, uma mulher extraordinária e, juntamente com a minha mãe, eram as suas "primas do Campo Grande".
Escreveu assim: "Mais tarde, morei no Campo Grande…Foi um dos mundos da minha juventude. Um mundo de pessoas, coisas, acontecimentos, conversas, projectos (….) onde todas as pessoas, cada uma à sua maneira, estavam profundamente influenciadas pelo espírito do lugar, daquele lugar especial que era aquela casa."."Vivi-a quarto por quarto, canto por canto, janela por janela, espelho por espelho. O jardim, os loureiros cor-de-rosa, o tanque redondo, os narcisos da Primavera, o mirante. (…) E nas tardes de Verão sentávamo-nos nos degraus da escada em meia lua que liga a sala grande com o jardim e falávamos sem fim de todas as coisas visíveis e invisíveis do céu e da terra. "
Por aqui, tudo permanece igual. Se chego à janela vejo os loureiros e a escada de pedra em meia lua. São as pessoas, muitas, que já não vejo. Ficaram em todos os cantos e em todos os espelhos. Porque "morrer é só não ser visto."
Maria José Nogueira Pinto
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