"Existe hoje um maior número de pessoas mornas"


SAPO 24    ISABEL TAVARES   18.01.2018

MARIA SALOMÉ PAIS: A MULHER QUE DIRIGE A ACADEMIA DAS CIÊNCIAS: ENTREVISTA


Tem 79 anos e uma energia contagiante. O pai morreu quando tinha apenas cinco e um tio materno deixou-lhe uma marca indelével: “Nos dias maus, mesmo naqueles em que nada parece correr bem, há sempre alguma coisa positiva. Nunca te esqueças de a encontrar e de a valorizar”, disse-lhe uma vez. Faz isso até hoje.


Quando era pequena, Maria Salomé Pais partiu a cabeça cinco vezes por trepar às árvores para proteger ninhos. No seu ano, para o seu curso, entraram na faculdade 60 alunos. No fim, tudo direitinho, formaram-se nove, dos quais duas raparigas. Estava-se em 1962. Mais tarde doutorou-se em Biologia Celular e ainda se lembra das reuniões em que participava também Manuel Sobrinho Simões, ela na área das plantas, ele na área humana.

Considera o regime de quotas um disparate e também não se imagina sem carreira ou sem família. Tudo é conciliável. É há sete anos secretária-geral da Academia das Ciências de Lisboa e, coincidência, o marido é o director do museu. Mas separa muito bem as águas e se alguém lhe pergunta pelo marido faz questão de ignorar: “Está a falar de quem?!”

Conta muitas histórias, mas nem todas ficaram gravadas porque parte da conversa é passada longe da câmara e dos microfones, a visitar as belíssimas instalações do antigo Convento de Jesus. Como a da pressão que sofreu por parte do gabinete do primeiro-ministro para ceder por vários dias as instalações da Academia para a Web Summit. A troco de nada. Não vacilou: “Íamos ter de pagar luz, água, pessoas para ali estarem a servir, papel higiénico, catering, tudo. A Academia das Ciências não é do governo, é de todos nós”. Ou outra, quando um quadro desapareceu e o assunto foi denunciado à PJ, para reaparecer na véspera do inquérito. Maria Salomé é da Beira. Diz que é dura. Nós, em bom português, dizemos que é tesa. E que precisamos de mais como ela.

Há sete anos aceitou ser secretária-geral da Academia das Ciências e um dos seus objectivos era dar a conhecer a instituição aos portugueses. A Academia é hoje mais conhecida?

Devo dizer que nunca tinha percebido quem propôs o meu nome para a academia até conhecer um senhor de Coimbra, com mais de 90 anos, o professor Telo Neiva, que não faltava a uma sessão, fosse Verão ou fosse Inverno. Hoje sinto-me muito bem e pauto-me sempre pela isenção. Este professor não tinha nada a ver comigo profissionalmente. Gosto que tenha sido assim e de me sentir livre como um passarinho nestas matérias: digo não ou sim quando acho que devo dizer. Estou aqui mais em permanência desde 2010 e tive o privilégio de começar a trabalhar com o professor Adriano Moreira como presidente. Dar a conhecer a Academia das Ciências foi sempre o meu grande empenho porque eu própria, mesmo sendo académica, conhecia mal a academia. Havia sessões ordinárias que me interessavam, por exemplo na área da biotecnologia. Quando deixei de estar tão activa em laboratório e passei a ter aqui mais responsabilidades tinha deixado 51 doutores sob a minha orientação, o que me orgulha e me dá um prazer imenso.

Dizia que para lá disso conhecia mal a academia…

Talvez também porque não fazia um esforço ou porque a pessoa só se questiona quando vê uma pontinha do fio. É aí que fica com curiosidade para conhecer o resto. E eu vi a pontinha do fio. Estava numa casa com um percurso, criada em 1799, na véspera de Natal, e que ultrapassou até hoje muitas vicissitudes, algumas que a consolidaram, outras que lhe criaram problemas. Se eu, do meio e curiosa, conheço mal a academia, porventura outros, menos curiosos e mais afastados, conhecem-na pior. Portanto, a minha primeira aspiração era por isso dar a conhecer esta casa, um verdadeiro tesouro por aquilo que tem, por aqueles que tem.

Aliás, a máxima adoptada pela rainha D. Maria I ao criar a academia – quem a criou foi o sobrinho, o duque de Lafões, mas sem a rainha ela não teria existido - era: “Se o que fizeres não for útil, a glória é vã”, ou seja, de nada serve. A academia tem um passado riquíssimo, um presente riquíssimo, mas pouco conhecido. Como disse, tive a sorte de privar com o professor Adriano Moreira, que já conhecia. Foi a melhor presidência, sem querer ser injusta para os presidentes que vieram depois. Ele deixa uma marca nas pessoas com quem trabalha. E neste contexto foram várias as iniciativas que tive a sorte de serem bem acolhidas, como a organização de almoços-tertúlia todos os meses, em que um convidado iniciava a discussão de um tema e diversos académicos interessados se inscreviam para participar no debate. Estes almoços estão agora suspensos, à espera de alguma novidade. Mas o professor Adriano Moreira, que é um visionário, pensou numa forma de abrir a academia e o seu saber aos de fora, numa perspectiva de dever de cidadania, de se colocar ao serviço da comunidade. Que foi um dos objectivos com que a academia foi criada: promover o saber e a cultura para o bem do país. E gerou-se um movimento de cidadania através do Instituto de Altos Estudos com o Instituto para Seniores, que passou a chamar-se Instituto de Estudos Académicos Adriano Moreira quando o professor fez 90 anos, e faz parte do Instituto de Altos Estudos.

Um para as pessoas a partir dos 50 anos, o que não impede que seja frequentado por outras - todas as conferências são frequentadas de acordo com os interesses das pessoas, não pela idade. Mas isto proporcionava a possibilidade de chamar os que gostariam de continuar a aprender e já tinham mais idade, independentemente daqueles que, como menos idade, quisessem continuar a aprender. Quando uma pessoa está activa tem um horário de trabalho que a preenche durante o dia, tem a família, que requer atenção fora do horário de trabalho, e tem menos tempo. O que tentámos foi encontrar áreas que interessassem às pessoas quando começam a aliviar um pouco o seu trabalho. À medida que a longevidade vai aumentando, as pessoas também vão tendo tempo e predisposição para fazer e aprender. E também é preciso criar mais oportunidades.

Curioso, porque um estudo feito pela Fundação Calouste Gulbenkian há pouco revelou que mais de 60% dos portugueses considera que já sabe tudo o que tem para saber.

A ignorância é uma coisa muito triste. O problema que se põe tem a ver com a idade da academia, que tem 200 e muitos anos. Foi criada com um determinado objectivo numa altura em que as universidades não existam ou existiam quase embrionariamente. A academia tem um espólio extraordinário em equipamentos de física e de química, de biologia e de medicina, porque já no tempo do convento existia a intenção de criar o ensino através da observação. Foi um franciscano, o padre Joseph Mayne, e daí o Museu Maynense, que deixou uma quantidade de colecções do ensino que se fazia das ciências nesse tempo. Na altura as universidades não estavam dispersas pelo país, a primeira universidade de estudos gerais, reza a história, foi criada em Lisboa - ainda existe a Rua dos Estudos Gerais, em Alfama – e depois foi transferida para Coimbra, onde seria menos problemática a acção dos estudantes, cheios de vida e de ímpeto. A partir daí as universidades começaram a ter um papel cada vez maior no ensino e mais tarde na investigação. A academia perde a missão de ensinar. Mas tem os melhores, reconhecidos nacional e internacionalmente.

Actualmente a Academia atribui prémios em dinheiro a alunos do 12.º ano e também a doutores. Pode falar neles?

A academia tem tentado desenvolver prémios para valorizar o trabalho quer de finalistas do ensino secundário, quer de doutores. Mas o anúncio desses prémios atinge muito poucos jovens.

Porquê?

Em relação aos prémios atribuídos aos finalistas do secundário, que são o prémio Pedro Nunes, Alexandre Herculano e Padre António Vieira, para os melhores alunos de Português, de História e de Matemática, por mais cartas que envie, e no último concurso enviaram-se mais de 3 mil anúncios para as diferentes escolas, respondem apenas uma ou duas dezenas. Num dos anos, o prémio nem sequer foi atribuído, porque os trabalhos apresentados não tinham qualidade. No caso dos doutoramentos, o prémio é atribuído pelo mecenato do Montepio e na primeira versão houve cinco ou seis candidatos. Talvez porque os prémios são divulgados no site da academia, se porventura os jovens não conhecem a academia não vão ao site. E como são também divulgados nos jornais, mas como eles não lêem jornais não vêem os anúncios. O valor do prémio é de 5 mil euros, mas não é conhecido, não é concorrido. As escolas, como se trata de teses de doutoramento já apresentadas, o aluno já saiu, talvez não sintam interesse em contactar os ex-alunos. Os temas são alargados a diversas áreas. Por estranho que pareça, ainda nenhuma escola de Lisboa ganhou. Não imagino que haja inflação de notas nestes centros, isso seria uma desgraça. E as melhores, da minha experiência, são de alunos de Medicina e que tiveram as notas mais altas a Matemática. Muitas vezes um 19 ou 20 a História ou a Português.

Como olha para o ensino hoje e como o compara com o ensino da sua altura de estudante e de professora?

É uma boa pergunta. A resposta é difícil e levava-me se calhar um dia inteiro. Por natureza não sou nem nunca fui pessimista. E costumo dizer que as excepções confirmam a regra: felizmente temos hoje excelentes estudantes, excelentes investigadores e Portugal tem um substrato humano científico fantástico. Não é grande, mas mais vale poucos e bons do que muitos e assim-assim. O que vejo de diferente é o empenho global. Quarenta anos depois de estar ao serviço, que foi quando pedi a aposentação, tinha 63 anos, chegou a autorização para me reformar. E continuo interessada e a gostar de acompanhar os meus meninos, que estão espalhados por todo o mundo, Lisboa e arredores. O que sinto é uma diferença muito grande na motivação. Dou um exemplo: no primeiro ano da licenciatura em Biologia havia 400 alunos. E eu dava aulas quatro vezes, porque o anfiteatro só levava 100 pessoas. Não é fácil, a pessoa vai-se repetindo e, embora nunca seja igual, chega uma altura em que já não se sabe o que se disse a quem. Mas porque é que falo nesta massa? Porque esta massa, que parece indiferenciada, não era. Havia sempre motivações extraordinárias. Nos meus últimos anos, que não estão muito longe – diria que há uns sete anos –aquilo que eu reparava é que existe um maior número de pessoas mornas. Ou seja, pessoas que não expressam estímulos, reagem pouco. Enquanto antes, com um ensino muito mais pesado – mas muito mais pesado – os alunos questionavam. Sou do tempo em que propus e vigorou pela primeira vez em Biologia as disciplinas de opção leccionadas por professores convidados e fui posta em causa por isso.

O que aconteceu?

Numa reunião geral, com o anfiteatro cheio, um colega perguntou-me o que faria eu se não tivesse alunos nas minhas disciplinas de opção. E eu, muito calma, respondi que melhorava a qualidade do produto. Isto para dizer que o professor, pelo menos eu, se sentia sempre desafiado pelos estudantes. Cheguei a ter disciplinas em que lançava um tema numa aula para a aula seguinte e essa aula era de discussão iniciada pelos estudantes. Eram aulas enriquecedoras para os alunos e para mim e exigiam sistematicamente que eu não perdesse uma oportunidade de estar em cima do acontecimento, porque sabia que ia ser interpelada em relação à ultima descoberta. Queriam mais.

Os alunos são mais mornos. E a sociedade em geral?

Também. Vê-se em tudo, até na política. Não sei se estou certa ou errada, mas se perguntar a um jovem de 18 anos qual é o seu ideal de vida, penso que a maioria não saberá responder. Poderá encontrar um ou outro, mas para intervir, para trabalhar, para se dar, uma pessoa tem de ter um ideal. Se não tiver, o mais natural e perguntar-se o que anda aqui a fazer. A única justificação não pode ser trabalhar porque tem de ser, porque precisa de pagar as contas para viver.

O que faz com que não haja esse ideal, esse estímulo?

Devo dizer que muitas vezes a ciência é muito difícil em Portugal. Nem sempre o que se faz tem aplicação prática, pelo menos no imediato. Estive presente em toda a era da criação da biotecnologia em Portugal, em particular da biotecnologia vegetal, e sinto-me muito feliz por isso. Sempre recusei privilegiar a investigação aplicada em detrimento da investigação fundamental, porque considero que não há investigação aplicada sem investigação fundamental. Há saber, que resulta da investigação e pode ter ou não aplicação directa. Mas mesmo aquela que não tem aplicação imediata pode vir a ter uma aplicação a seu tempo. O que sabemos é que, de facto, o ensino é o grande empregador dos nossos licenciados. Quando o número de estudantes no ensino diminui, o emprego diminui. Muitas vezes olhei para trás, para a minha vida e para aqueles que responderam ao apelo que é a ciência, a investigação, e questionei-me face à falta de oportunidades para os melhores se não estaria a fazer mal a estas pessoas que se dedicavam tanto. Perguntava-me onde iriam encontrar uma vida que os preenchesse usando todas as ferramentas por que lutaram. Na minha área ou noutra qualquer.

Como foi consigo?

Eu tive experiências extraordinárias com as nossas indústrias, não me posso queixar porque sempre tive muita interacção com empresas. Isto não tem nada de lamento ou de queixa, não partilho do pensamento de que é a indústria que vira as costas. Somos nós que temos de aprender a lidar com a indústria. Hoje já há um movimento de criação de PME e de SME, que vem do tempo do saudoso professor Mariano Gago, que lutou pela qualidade da investigação e pela aplicabilidade do conhecimento/qualidade numa altura em que não tínhamos um tecido capaz de absorver os muito bons. Lembro-me sempre de um tio de magnifica memória que morreu com 102 anos e me dizia: “Nunca deixes de aspirar o óptimo, porque se aspirares o óptimo chegas ao muito bom”.

O óptimo não é inimigo do bom?

Não, de maneira nenhuma. Nunca se chega àquilo que se aspira, mas se se aspirar alto, pelo menos chega-se mais longe. Se aspiro ao óptimo, consigo porventura chegar ao muito bom. Mas sem fazer esse esforço fica-se sempre para trás. Isto a propósito de pensar no que seria o futuro daquela gente. Sinto-me feliz porque penso que estão todos muito bem empregados e a fazer o que gostam, mesmo os que estão cá. O empreendedorismo, a capacidade de criação de pequenas e médias empresas, dá hoje possibilidades que eram impossíveis há alguns anos. Eu própria constitui uma empresa no passado em conjunto com dois colegas, mas que acabou por ser comprada por uma empresa americana devido a problemas de financiamento. E está a produzir muito bem, o que prova que era um produto de qualidade.

Que produto era?

Uma enzima de origem vegetal para coagulação do leite. Que está a vender em todo o mundo. Mas às vezes o financiamento põe em causa a sustentabilidade de toda a empresa. Noutros sector a dificuldade é encontrar um emprego que satisfaça o investigador, que acaba por ter de ir para fora. Mesmo com os incentivos todos a virem para cá, às vezes dizem-me que aqui não têm tudo… Parece-me errado, porque se a pessoa tiver iniciativa e quiser voltar, se tiver capacidade de realização e congregação de esforços com outros igualmente bons, penso que encontra forma de ir para a frente com os seus projectos. Eu acredito nisso. Mas também sinto um grande orgulho nos que foram escolhidos para ir para Inglaterra, América, Alemanha.

Falou num tio seu… Uma vez ouvi-a contar uma história engraçada, penso que sobre o mesmo tio. Tinha a ver com valorizar coisas positivas…

Perdi o meu pai com cinco anos. Éramos quatro, mas o irmão antes de mim morreu muito cedo, e eu tinha duas irmãs mais velhas, de tal maneira que costumava dizer que tinha três mães. A minha irmã mais velha tinha mais 16 anos do que eu e a outra tinha mais 14. Mas não fiquei mimada de mais. O meu tio dizia-me sempre: “Nos dias maus, mesmo naqueles em que nada parece correr bem, há sempre alguma coisa positiva. Nunca te esqueças de a encontrar e de a valorizar”. Isto ficou-me. Porque o que fazemos normalmente é o contrário, valorizamos a desgraça. E não se justifica, a vida torna-se mais pesada. Não há quem não tenha problemas, mas a pessoa cansa-se a olhar para o negativo. E o português tem muito isso, a mania de se desconsiderar. Hoje rio-me, mas lembro-me de pensar: “Ó tio, como é que passou do século XIX para o séc. XX?” Aquilo fazia-me confusão. [risos] Naquele tempo as mães não trabalhavam, não era fácil ficar a ajudar a irmã mais nova - ele tinha 27 anos de diferença da minha mãe – a criar três filhas – era o tempo da tuberculose. E ele manteve uma serenidade, uma paz de espírito…

Isso influenciou-a de que forma?

Eu nasci nas faldas da Serra da Estrela, sou um bocadinho dura, tenho muita honra de ter nascido na família em que nasci, com princípios fantásticos, que me ensinou a viver com uma ética extraordinária e com um ideal. Não sei o que é viver sem um ideal.

Qual é o seu ideal?

Se quiser que eu traduza rapidamente qual foi o meu ideal eu digo-lhe: quando era pequenina, quando tinha uns nove anos, contava a minha mãe, eu queria ir passar férias a Salamanca. Tinha aquela fixada e com 15 anos fui a Espanha, a Salamanca.

Porquê?

Penso que talvez porque o meu tio era um indivíduo que gostava muito de conviver, que recebia muitos estrangeiros na altura do volfrâmio, falava línguas, tinha sempre a casa cheia. Ele cultivava o saber e o viver em sociedade. Lá em casa fazia-se vinho, fazia-se moscatel – ainda consigo sentir o sabor das uvas. Quando me nomearam para a comissão científica da National Geographic em Portugal eu não queria acreditar… Não fazia ideia como tinha sido, mas cresci a admirar a revista, que o meu padrinho tinha e que fazia parte de todo aquele ambiente. Nesta vivência, havia sempre quem falasse com a minha mãe, com o meu tio, sobre o meu futuro, que eu tinha muitas capacidades, mas, sem pai… Eles já tinham muita idade, nasci fora de tempo, e achavam que devia ir para professora primária. Aquilo fazia-me confusão, eu não queria. Primeiro, porque tinha uma paixão pela natureza – parti a cabeça cinco vezes a subir às árvores para proteger os ninhos de pássaros maiores que iam aos ovos – e depois não podia aceitar, nunca gostei que me obrigassem a nada. O meu tio sempre me incentivou a fazer mais e dizia-me, já naquele tempo, para viajar, que era uma boa maneira de conhecer novas culturas, novas gentes. Eventualmente por isso Espanha e Salamanca, a primeira viagem que fiz sozinha. Esta abertura não é compatível com o pessimismo português. Temos de saber acompanhar os outros, pelo menos tentar. Foi esta a lição de vida. E o meu ideal era fazer mais. E foi isto que tentei também incutir nos meus alunos.

Sempre quis ser bióloga?

Para saber mais tinha de ir para a universidade. Mas o tio não viveria para sempre. A minha paixão foi sempre a vida, a natureza e eu só tinha duas hipóteses: Biologia ou Medicina. Eu gostava e queria Medicina, mas não tinha dinheiro. Fiz o meu gostinho, que era a Biologia, e nunca, nunca me arrependi. Tenho uma admiração enorme pelo investigador médico, mas também pelo bom biólogo. Um biólogo prepara a vereda de um médico. Eu vivia rodeada de natureza, de plantas e de animais e aquela natureza questionava-me e intrigava-se.


Há pouco falava-me na quantidade de mulheres que se licenciaram no seu curso. Hoje discute-se a paridade nos cargos públicos, nas empresas. O que pensa do regime de quotas?

Para mim é um disparate. Em igualdade de circunstâncias penso que não há nada que justifique preterir um homem em relação a uma mulher ou vice-versa, mas estar a condicionar uma escolha porque tem de se preencher uma quota sem olhar para o objectivo que se pretende atingir é igualmente mau. A igualdade de oportunidades é excelente, não se pode descriminar se é feito por homem ou mulher para decidir se ganha mais ou menos, se sobe mais ou menos. Vale tanto um como outro se for cientificamente e humanamente equivalente. Como entre homens há coisas que os distinguem dentro de um espectro, entre homem e mulher é igual num espectro idêntico e do ponto de vista profissional. Tem de haver essa avaliação e mais nada. Sei que sou contestada aqui, como sou contestada quando digo que é absolutamente possível e normal conciliar a profissão com a família. Não há nenhuma varinha mágica para dizer como, cada um tem a sua forma de o fazer. O cumprimento do dever pode até ser um estímulo e um exemplo para os mais novos.

É casada com Miguel Telles Antunes, que é director do museu da Academia das Ciências de Lisboa. Como é trabalhar na mesma instituição que o seu marido?

Fomos assim toda a vida: amigo não empata amigo. Tenho a minha profissão, ele tem a dele, conhecemo-nos, somos marido e mulher e temos a nossa família, que não se mistura com o trabalho. E não há dúvida nenhuma de que funciona lindamente – não via as coisas a funcionar de outra forma. Vou dar-lhe um exemplo: nós estamos aqui a falar e nem sei se ele cá está ou não. Às vezes telefona a perguntar se vou almoçar e umas vezes sim, outras não. Mas estamos no mesmo edifício. Para mim, para as coisas funcionarem bem no trabalho, não há marido e mulher, isso contamina logo tudo. E quando me perguntam pelo meu “marido”, respondo sempre da mesma maneira: “O meu marido? Não estou muito bem a ver quem é. Estará a falar do director do Museu Maynense?” [risos]

A esperança de vida está a aumentar, em breve será de 110 anos. Vem acompanhada de qualidade de vida, sente isso?

Tenho 79 anos e penso que ainda não percebemos muito bem o que significa estar reformado. Primeiro, porque a nossa literacia é ainda muito baixa. Nem todos tiveram uma vida profissional e muitas mulheres não têm outro incentivo se não estar em casa à espera do marido, preparar as refeições e ver televisão. Infelizmente, também não tiveram outras possibilidades. Muitos mantém-se vivos devido ao extraordinário serviço nacional de saúde que tem Portugal, porque os comportamentos não são propícios a uma vida muito activa e os hábitos alimentares não são os melhores. Além disso, ouvi uma pessoa com muita responsabilidade afirmar que os velhos (não disse velhos, usou outra palavra) deviam deixar de trabalhar para deixar os empregos para os jovens. Ora, não se pretende que os velhos ocupem os lugares dos mais novos, o que interessa é que existam oportunidades para ambos. Um pode acompanhar a actividade do outro. Os velhos não são estúpidos e têm experiência e os novos têm o ímpeto, a força. É desta conjugação, que ainda está longe de acontecer, que todos podemos beneficiar. O pior que me poderia acontecer era eu sentar-me inválida numa cadeira a olhar para o infinito. Uma velhice assim não vale a pena, até porque quem sofre com isso são os que ficam com a pessoa na sua dependência. Ainda volto ao meu tio: nunca parou e entre apanhar uma pneumonia na véspera de Natal e morrer na véspera de ano novo foram oito dias. Não sinto o peso da velhice, mas se calhar não sinto porque não penso nisso. Às vezes olho para as minhas mãos e penso: realmente tenho mãos de velha. Mas eu não sinto as mãos, por isso, qual é o problema das minhas mãos?! Tenho interesse pela vida e oxalá os meus neurónios continuem a funcionar.

O professor Adriano Moreira conta que quando era presidente da academia todos os dias ia encontrando uns embrulhos mais perto da porta. Até que se descobriu que eram obras de arte…

De facto, o problema é grave, mas, felizmente, não tão grave como poderia ter sido. Esta casa é um tesouro - que os portugueses não conhecem, apesar de ser património nacional. Como tal, acontece de tudo. E acredito que tem havido o muito bom e o muito mau. Quando o professor Adriano Moreira era presidente verificou-se que faltava um dos melhores quadros. Tudo começou porque vi um grampo na parede sem nada, ao pé da sala das sessões. Primeiro falei com o director do museu, depois com diversas pessoas e, de facto, percebe-se que devia lá ter estado um quadro. Cada vez se descobria mais qualquer coisa, mas ninguém sabia que quadro era, ninguém tinha visto o quadro, até que se confirma que o director do Museu Nacional de Arte Antiga tinha pedido à academia para lhe ceder um quadro para uma exposição. O quadro sempre existia. Pergunta puxa pergunta, vamos andando para trás no tempo e há um catálogo da academia onde consta o quadro, que tinha sido fotografado uns anos antes. Mas onde está? Nada. Bem, é preciso tomar uma iniciativa e o professor Adriano Moreira e o director do museu decidem que devemos falar à Polícia Judiciária, que tem um departamento só para estes assuntos [obras de arte furtadas]. Um dia, pensava até que a coisa já tinha caído no esquecimento, a PJ telefona-nos para marcar ir à academia. Resolvo então ter uma conversa com os funcionários: “Meus caros, está provado que este quadro existia, a Policia Judiciária vem cá na próxima semana. Das duas uma: ou o quadro aparece e se avisa a PJ ou não aparece e terei de dar uma lista com os nomes de todos os funcionários para serem inquiridos pela polícia”. Isto aconteceu num dia, no dia seguinte apareceu o quadro muito bem embrulhado atrás de um armário ao pé da sala das sessões e mesmo ao lado do quadro da luz.

A propósito de casos insólitos, quando fizeram as obras para o parque de estacionamento descobriram, entre vários achados, indícios de antropofagia, foi isso?

Como sabe isto era um convento da Ordem Terceira de São Francisco, que englobava todos os edifícios do lado direito e esquerdo da academia, o Hospital de Jesus, a Igreja das Mercês e a quinta do convento, que se estendia até à calçada do Combro. Encontrámos fotografias do rei D. Carlos, que veio assistir ao lançamento da primeira pedra do Liceu Passos de Manuel, uma delas mostra um caneiro que passa por baixo da academia a continua por aí fora. Recentemente houve umas chuvas muito fortes e uma grande inundação por entupimento da conduta que vai ter ao esgoto e verificou-se que havia um caneiro por baixo da academia ao qual iam dar pequenos caneiros, um deles fica no museu, junto à cozinha do convento. Aí foram encontrados restos de loiças, pratas, garrafas e vestígios dos principais alimentos que os frades consumiam na altura. A história do canibalismo nasceu dos estudos feitos no claustro do convento, onde eram enterradas as pessoas, mas porque quando foi do terramoto as campas foram utilizadas para deitar vários restos mortais. Foi então que se identificaram sinais de mordedura e de utilização desses ossos na alimentação, mas, como digo, associado às vítimas do terramoto.

De que vive a academia?

A academia, que é este gigante, vive com um financiamento do governo da ordem dos 300 e tal mil euros, um financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, que no ano passado foi de 40 mil euros, mas que este ano com as cativações é passou a ser de 30 mil e qualquer coisa, e de todas as receitas próprias que conseguirmos. Ao todo, uma verba que não chega a 500 mil euros e que tem de chegar para preservar todo este edifício que começou a ser construído ainda no século XVI e o que ele contém. Não é tarefa fácil.

Quais são, para si, as grandes ameaças que traz 2018?

A maior ameaça é o desconhecimento. Se a academia não estiver mais presente na sociedade, se não for mais conhecida do cidadão comum, não conseguirá levar para a frente a sua missão, que é proporcionar saber e cultura de qualidade.

Isso é também já um desejo para este novo ano?

Penso que não é pedir muito continuar a sentir-me motivada com vida e com esperança para que novas coisas aconteçam a bem de Portugal, de cada um de nós e da ciências. E mesmo o nosso saber estar na vida depende da ciência e daquilo que nos proporciona. Para a academia, o que eu gostaria é que fosse reconhecida como tal, que o país e os órgãos decisores olhassem para ela como um tesouro. E que a própria academia fosse capaz de se mostrar com a sua qualidade a todos os que dela possam e queira usufruir.

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