Justiça espectáculo
JOÃO CÉSAR DAS NEVES DN 2.12.2017
Vivemos numa época dedicada à justiça. Multiplicam-se instituições, iniciativas e declarações acerca de direitos humanos, desigualdade social, delinquência, marginalidade e discriminação. Infelizmente, muitas vezes, esta ânsia de equidade é, ela mesma, geradora de arbitrariedades, agravos, segregação.
O problema nasce de falhas no sistema judicial. A própria ânsia de legislar sobre tudo torna os processos morosos e tecnicistas, pervertendo o propósito. Já o antigo provérbio romano dizia "mais lei, menos justiça". Depois, frequentemente, são as próprias vítimas a terem vergonha ou dificuldade em denunciar, como nos casos de assédio sexual. Quando a exigência do Direito se sente frustrada pelos canais oficiais, lança compreensivelmente mão de outros expedientes, necessariamente piores.
Hoje a grande força justiceira da sociedade é a comunicação social. Muitos criminosos, incólumes no sistema judicial, vêem-se arrasados na imprensa, sentindo-se o público vingado pela difamação. Só que, se muitas vezes essa é a única forma de justa punição, o método tem problemas evidentes, representando uma linha muito perigosa de organização social.
O primeiro defeito vem directamente da finalidade conceptual do sistema jornalístico, que não é servir a justiça, mas informar ou, crescentemente, divertir. Sob a capa de vingador de inocentes, esconde-se frequentemente a simples ganância de espectáculo, alimentada pela inveja, coscuvilhice e crueldade. A saga mediática de José Sócrates, sobretudo no Correio da Manhã, é um bom exemplo dos extremos a que chega tal dinâmica. Por muitos crimes que possa ter cometido, nada justifica a obsessiva perseguição, devassa da vida e obscenas mexeriquices. Livres das regras judiciais de protecção de arguidos, os jornais, autonomeados justiceiros, dizem o que lhes apetece, sem decoro ou dignidade, para não falar de isenção e profissionalismo. Isso é injustiça.
O segundo aspecto advém de uma atitude dominante da cultura contemporânea, adoptada e promovida nessas publicações. O nosso tempo, que se considera livre e tolerante, só conhece dois extremos de avaliação: ou tudo é admissível e equivalente, ou é horrível e intolerável. Não há equilíbrio, compreensão, misericórdia. Isso vê-se bem nos recentes escândalos sexuais em Hollywood. De um momento para o outro, estrelas passam a vilões, sem sequer se esperar pela investigação. Kevin Spacey, acusado de há 30 anos ter assediado um rapaz, foi imediatamente despedido da Netflix, interrompendo ou arquivando as séries onde era protagonista. Tratamento tão súbito e radical perante acusações sem provas, dificilmente se pode considerar equitativo. O crime de assédio por poderosos é dos mais nojentos, infames e infelizmente frequentes. O tsunami de denúncias que se seguiu aos casos cinematográficos, criando uma moda global, é excelente para a prevenção deste crime vergonhoso, mas parece mais linchamento popular que justiça.
O terceiro problema é a facilidade de manipulação da imprensa por verdadeiros culpados. Donald Trump, que usa magistralmente a fúria mediática, quanto mais o acusam, mais aproveita. Assim venceu as primárias republicanas, com a impertinência destacando-o da multidão de candidatos. Desde então, alimenta cuidadosamente uma torrente de provocações, controvérsias e escândalos, que só lhe aumenta o poder.
Pior de tudo é jornalistas esquecerem a missão de informar para assumirem a posição de justiceiros, mesmo contra a justiça. Controlando a comunicação, facilmente fazem passar a realidade por aquilo que quiserem. Exemplo recente aconteceu no programa Linha da Frente da RTP1, no episódio «Quanto Custa Criar» de 26 de Novembro, acerca da delicada questão da retirada a seus pais de crianças em risco. O tema, dos mais dolorosos, complexos e sensíveis da nossa Justiça, só deve ser abordado com tacto, equilíbrio, profissionalismo.
Neste caso, a peça decidiu assumir abertamente um dos lados em confronto, considerando os pais condenados a perder os seus filhos como vítimas inocentes de um sistema cruel e corrupto. De forma breve e leviana, foram feitas acusações gravíssimas a tribunais, segurança social e instituições de acolhimento, apelidados de insensíveis, grosseiros e até corruptos, sugerindo-se vagamente negócios e interesses pecuniários. Entre os inúmeros profissionais que o programa agrediu grave e irresponsavelmente, chegou-se ao extremo de nomear um em particular.
O juiz Armando Leandro é uma das mais eminentes figuras da actualidade, com longa e prestigiada carreira dedicada às crianças em risco, em cargos públicos e voluntariado. Milhares de crianças e jovens devem-lhe tudo. Aos 82 anos, merecia honra e louvor da sociedade a quem tanto serviu. Em vez disso vê-se enxovalhado sem razão, acusado de negligência, insensibilidade, senão peculato, por um jornalista que, do alto da sua omnipotência ignorante, lavra sentenças de 40 minutos por capricho.
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