Vida, morte e dignidade
Ao atingir este princípio, abre-se a porta à legalização de qualquer auxílio ao suicídio e do homicídio a pedido
A história dramática de uma mulher portuguesa a quem tinha sido diagnosticado um cancro que não lhe permitiria viver mais de um ano e que recorreu, para se suicidar, aos serviços da organização suíça Dignitas relançou entre nós o debate sobre a legalização da eutanásia.
Parece surgir agora também entre nós a promoção da actividade desta associação, a quem têm recorrido pessoas de vários países, precisamente quando o próprio governo suíço pretende limitar os abusos a que se tem prestado este verdadeiro "turismo da morte".
Contra esta prática de auxílio ao suicídio, vários argumentos podem ser esgrimidos, uns de princípio, atinentes aos alicerces do nosso património civilizacional e da nossa ordem jurídica, e outros que apelam a juízos prudenciais e a critérios de precaução.
O princípio aqui em jogo é o da inviolabilidade e indisponibilidade da vida humana. Esta é sempre um dom inestimável, um bem que é o pressuposto de todos os outros bens humanos, incluindo o da liberdade. Não pode invocar-se a autonomia contra a vida, pois só é livre quem vive. Este princípio já servia de base a Kant para, antes de quaisquer outras razões, negar legitimidade ao suicídio. E também tem alicerçado a noção de indisponibilidade dos direitos humanos fundamentais, que as primeiras históricas declarações sempre afirmaram como "inalienáveis", isto é, dotados de um valor objectivo e independente da vontade do seu titular. Por outro lado, o valor e a dignidade da vida humana são intrínsecos, não se graduam, nem se perdem, com a maior ou menor saúde ou idade.
Ao atingir este princípio, abre-se a porta à legalização de qualquer auxílio ao suicídio, mesmo para além das situações de doença terminal (como o demonstra o exemplo da Dignitas), e do próprio homicídio a pedido.
Para além desta questão de princípio, qualquer legalização nunca escaparia a dificuldades práticas de aplicação que sempre a desaconselhariam por uma questão de prudência. Como definir em termos absolutos um prognóstico de um, mais ou menos anos de vida? Ao saber do caso desta mulher portuguesa, veio-me à mente o de uma familiar muito próxima, também vítima de cancro, que viveu alguns anos mais do que os escassos meses inicialmente previstos. Anos preciosíssimos, para a própria e para todos os que a rodearam, que dela receberam nesse período uma eloquente lição sobre o sentido da vida, do sofrimento e da morte, talvez mais eloquente do que a lição dos seus anos de vida saudável, tão activa e frutuosa. Uma lição que fez lembrar a dos últimos anos da vida de João Paulo II, quando a morte também já se apresentava como inexorável.
E como afastar, por outro lado, a possibilidade de novos métodos de tratamento, que façam caducar qualquer prognóstico (o que, ao que julgo saber, tem sido cada vez mais frequente precisamente no âmbito do cancro)? Acabo de ouvir na rádio o relato de uma situação dessas, de quem, esperançosamente, aguarda a qualquer momento a descoberta de novos tratamentos para a sua doença.
Diz-se que se trata apenas de respeitar a vontade livre e consciente das pessoas em causa. Mas como garantir em termos absolutos a autenticidade dessa liberdade? Quando são frequentes, nestas situações, as oscilações entre fases de esperança ou apego à vida e fases de depressão ou desespero. E sendo que se trata da mais irreversível das decisões, de que já nunca poderá voltar-se atrás.
Um Estado que legaliza a eutanásia ou o auxílio ao suicídio não se limita a respeitar, com neutralidade, a vontade de quem os pede. Está a transmitir uma mensagem, a afirmar que a vida dessa pessoa, pela sua doença ou por qualquer outro motivo, deixou de ter valor e dignidade. Não é isso que certamente esperarão do Estado e da sociedade todas os milhares de pessoas que estão hoje na mesma situação da nossa desesperada compatriota que foi à Suíça suicidar-se. A mensagem que deve ser dada a essas pessoas é de que a sua vida continua a ter valor e sentido até ao fim, para elas e para todos nós. Não é do auxílio ao suicídio, mas da compaixão solidária, que passa pelos cuidados paliativos, que precisam essas pessoas para viver e morrer com dignidade. Juiz
Parece surgir agora também entre nós a promoção da actividade desta associação, a quem têm recorrido pessoas de vários países, precisamente quando o próprio governo suíço pretende limitar os abusos a que se tem prestado este verdadeiro "turismo da morte".
Contra esta prática de auxílio ao suicídio, vários argumentos podem ser esgrimidos, uns de princípio, atinentes aos alicerces do nosso património civilizacional e da nossa ordem jurídica, e outros que apelam a juízos prudenciais e a critérios de precaução.
O princípio aqui em jogo é o da inviolabilidade e indisponibilidade da vida humana. Esta é sempre um dom inestimável, um bem que é o pressuposto de todos os outros bens humanos, incluindo o da liberdade. Não pode invocar-se a autonomia contra a vida, pois só é livre quem vive. Este princípio já servia de base a Kant para, antes de quaisquer outras razões, negar legitimidade ao suicídio. E também tem alicerçado a noção de indisponibilidade dos direitos humanos fundamentais, que as primeiras históricas declarações sempre afirmaram como "inalienáveis", isto é, dotados de um valor objectivo e independente da vontade do seu titular. Por outro lado, o valor e a dignidade da vida humana são intrínsecos, não se graduam, nem se perdem, com a maior ou menor saúde ou idade.
Ao atingir este princípio, abre-se a porta à legalização de qualquer auxílio ao suicídio, mesmo para além das situações de doença terminal (como o demonstra o exemplo da Dignitas), e do próprio homicídio a pedido.
Para além desta questão de princípio, qualquer legalização nunca escaparia a dificuldades práticas de aplicação que sempre a desaconselhariam por uma questão de prudência. Como definir em termos absolutos um prognóstico de um, mais ou menos anos de vida? Ao saber do caso desta mulher portuguesa, veio-me à mente o de uma familiar muito próxima, também vítima de cancro, que viveu alguns anos mais do que os escassos meses inicialmente previstos. Anos preciosíssimos, para a própria e para todos os que a rodearam, que dela receberam nesse período uma eloquente lição sobre o sentido da vida, do sofrimento e da morte, talvez mais eloquente do que a lição dos seus anos de vida saudável, tão activa e frutuosa. Uma lição que fez lembrar a dos últimos anos da vida de João Paulo II, quando a morte também já se apresentava como inexorável.
E como afastar, por outro lado, a possibilidade de novos métodos de tratamento, que façam caducar qualquer prognóstico (o que, ao que julgo saber, tem sido cada vez mais frequente precisamente no âmbito do cancro)? Acabo de ouvir na rádio o relato de uma situação dessas, de quem, esperançosamente, aguarda a qualquer momento a descoberta de novos tratamentos para a sua doença.
Diz-se que se trata apenas de respeitar a vontade livre e consciente das pessoas em causa. Mas como garantir em termos absolutos a autenticidade dessa liberdade? Quando são frequentes, nestas situações, as oscilações entre fases de esperança ou apego à vida e fases de depressão ou desespero. E sendo que se trata da mais irreversível das decisões, de que já nunca poderá voltar-se atrás.
Um Estado que legaliza a eutanásia ou o auxílio ao suicídio não se limita a respeitar, com neutralidade, a vontade de quem os pede. Está a transmitir uma mensagem, a afirmar que a vida dessa pessoa, pela sua doença ou por qualquer outro motivo, deixou de ter valor e dignidade. Não é isso que certamente esperarão do Estado e da sociedade todas os milhares de pessoas que estão hoje na mesma situação da nossa desesperada compatriota que foi à Suíça suicidar-se. A mensagem que deve ser dada a essas pessoas é de que a sua vida continua a ter valor e sentido até ao fim, para elas e para todos nós. Não é do auxílio ao suicídio, mas da compaixão solidária, que passa pelos cuidados paliativos, que precisam essas pessoas para viver e morrer com dignidade. Juiz
Comentários