A formidável Precious
DN 2011.03.11
Maria José Nogueira Pinto
Precious, uma adolescente americana, negra e obesa a quem a vida socou como se fosse um saco de boxe, apresenta--se no grande ecrã como o personagem mais acabado de uma realidade oculta. Compro o bilhete e sento-me na obscuridade da sala de cinema para ver o mundo real que as teorias e as estatísticas escamoteiam ao olhar adormecido das sociedades ditas organizadas.
Vale a pena ir ver para saber como é nascer e crescer num gueto de indignidade, na violência física e psicológica, na falta de amor e na humilhação no epicentro de um sistema de segurança social burocratizado, que se move por inquéritos, que fomenta a ocultação, que responde dando um cheque calculado na base de um agregado familiar que não existe, de um quotidiano que não acontece, assente em pressupostos que não se verificam. Uma ficção que conforta o sistema, o justifica e deixa no maior abandono e solidão, na mudez das palavras que se não devem proferir, das histórias que se não podem contar a uma adolescente, grávida pela segunda vez do seu próprio pai.
Uma história de faca e alguidar? Um filme fácil a explorar ao extremo uma história lamechas? Nada disso. Uma narrativa que denuncia a inoperância do que, para comodidade de todos, se estabeleceu como o possível e o correcto tratamento da desgraça inevitável de alguns, dos "irrecuperáveis", rompendo com um estrépito silencioso a finíssima película entre um apoio mecânico, despersonalizado, sem rosto nem coração, e um outro plano, tão mais arriscado mas tão mais sublime, da compaixão que vê o outro como uma pessoa e não como um processo, um mero número, um caso descartável.
A história de Precious é a história de milhares de adolescentes apanhadas na voragem da reprodução geracional da miséria humana, obrigadas a simular para sobreviver, a ajeitar a sua desgraça aos ditames do sistema de protecção social, a equilibrarem-se nas margens do by the book oficial. Interrogada pela assistente social sobre como era o ambiente da sua casa, Precious, cansada de mentir, responde: persianas corridas, comer, ver televisão, dormir e, no dia seguinte, comer, ver televisão, dormir sempre com as persianas corridas. E olhando, pela primeira vez, nos olhos da assistente social, pergunta: o que é que você pode fazer com isto?
Expulsa da escola por estar novamente grávida, Precious aceita ir para uma escola alternativa. Pela primeira vez senta-se na carteira da frente e pela primeira vez uma professora interpela--a, obriga-a a falar de si própria. Quando lhe pergunta como se sente a falar, por fim, de si própria, Precious responde: "I feel here." E aqui começa a caminhada da redenção: não vale a pena receber um subsídio que te mantém oculta e silenciosamente corrompida. Lê, escreve, aprende a ser gente, liberta-te.
A formidável Precious conhece os primeiros afectos que não violam, não maltratam, não humilham. Torna-se forte, capaz, e vai à luta, um filho ao colo e uma filha pela mão, os filhos que, segundo todas as regras bovinamente aceites, devia ter dado para adopção.
Por cá assinala-se a publicação do livro Acreditar no Futuro, da autoria de Isabel Gomes, que nos transporta para a realidade portuguesa. É um relato essencial que junta um profundo conhecimento com uma larga e frutífera experiência de trabalho junto dos menores em risco, as Precious que a par e passo vamos encontrando também aqui. É um livro que escalpeliza o sistema para o corrigir e melhorar, escrito por alguém, que, tal como a professora do filme, acredita que dar esperança é fundamental para estes jovens e que o desafio decisivo que eles nos colocam é o de educar. Para a auto-estima, a dignidade, a esperança e a vida. A ver e a ler, sem falta.
Maria José Nogueira Pinto
Precious, uma adolescente americana, negra e obesa a quem a vida socou como se fosse um saco de boxe, apresenta--se no grande ecrã como o personagem mais acabado de uma realidade oculta. Compro o bilhete e sento-me na obscuridade da sala de cinema para ver o mundo real que as teorias e as estatísticas escamoteiam ao olhar adormecido das sociedades ditas organizadas.
Vale a pena ir ver para saber como é nascer e crescer num gueto de indignidade, na violência física e psicológica, na falta de amor e na humilhação no epicentro de um sistema de segurança social burocratizado, que se move por inquéritos, que fomenta a ocultação, que responde dando um cheque calculado na base de um agregado familiar que não existe, de um quotidiano que não acontece, assente em pressupostos que não se verificam. Uma ficção que conforta o sistema, o justifica e deixa no maior abandono e solidão, na mudez das palavras que se não devem proferir, das histórias que se não podem contar a uma adolescente, grávida pela segunda vez do seu próprio pai.
Uma história de faca e alguidar? Um filme fácil a explorar ao extremo uma história lamechas? Nada disso. Uma narrativa que denuncia a inoperância do que, para comodidade de todos, se estabeleceu como o possível e o correcto tratamento da desgraça inevitável de alguns, dos "irrecuperáveis", rompendo com um estrépito silencioso a finíssima película entre um apoio mecânico, despersonalizado, sem rosto nem coração, e um outro plano, tão mais arriscado mas tão mais sublime, da compaixão que vê o outro como uma pessoa e não como um processo, um mero número, um caso descartável.
A história de Precious é a história de milhares de adolescentes apanhadas na voragem da reprodução geracional da miséria humana, obrigadas a simular para sobreviver, a ajeitar a sua desgraça aos ditames do sistema de protecção social, a equilibrarem-se nas margens do by the book oficial. Interrogada pela assistente social sobre como era o ambiente da sua casa, Precious, cansada de mentir, responde: persianas corridas, comer, ver televisão, dormir e, no dia seguinte, comer, ver televisão, dormir sempre com as persianas corridas. E olhando, pela primeira vez, nos olhos da assistente social, pergunta: o que é que você pode fazer com isto?
Expulsa da escola por estar novamente grávida, Precious aceita ir para uma escola alternativa. Pela primeira vez senta-se na carteira da frente e pela primeira vez uma professora interpela--a, obriga-a a falar de si própria. Quando lhe pergunta como se sente a falar, por fim, de si própria, Precious responde: "I feel here." E aqui começa a caminhada da redenção: não vale a pena receber um subsídio que te mantém oculta e silenciosamente corrompida. Lê, escreve, aprende a ser gente, liberta-te.
A formidável Precious conhece os primeiros afectos que não violam, não maltratam, não humilham. Torna-se forte, capaz, e vai à luta, um filho ao colo e uma filha pela mão, os filhos que, segundo todas as regras bovinamente aceites, devia ter dado para adopção.
Por cá assinala-se a publicação do livro Acreditar no Futuro, da autoria de Isabel Gomes, que nos transporta para a realidade portuguesa. É um relato essencial que junta um profundo conhecimento com uma larga e frutífera experiência de trabalho junto dos menores em risco, as Precious que a par e passo vamos encontrando também aqui. É um livro que escalpeliza o sistema para o corrigir e melhorar, escrito por alguém, que, tal como a professora do filme, acredita que dar esperança é fundamental para estes jovens e que o desafio decisivo que eles nos colocam é o de educar. Para a auto-estima, a dignidade, a esperança e a vida. A ver e a ler, sem falta.
Comentários
No fim de semana li o artigo da Maria José Nogueira Pinto que publicou no blog do POVO.
Ela falou muito bem do filme Precious, a qual referiu que era para se ver.
Nesse mesmo instante ficamos com alguma vontade de ir ao cinema, e assim fomos, no sábado à noite.
A 1ª metade do filme pareceu-nos bastante bom, e de acordo com o texto da MJN Pinto. Na 2ª parte foi o espanto. Afinal o filme é pró-gay pois tudo passa a girar à volta de uma professora que ajudou a rapariga Precious, mas que é lésbica. A partir daqui o filme põe em pé de igualdade o sofrimento da professora pois a sua mãe não aceita a sua relação homosexual, e o sofrimento da Precious que foi violada pelo Pai desde os 3 anos e que está gravida do 2º filho.
Para quem não tem um juízo correcto e inabalável sobre este tema certamente se deixa levar pela boa atitude da professora que ajuda a Precious; mas o mote do filme não pretende ser esse, como bem se vê, mas sim afirmar que só há violência na famílias com casais heterosexuais.
Parece-nos que a apreciação da MJN Pinto está completamente desajustada e errada, com muita pena nossa.
Parece-nos também que o Pedro não viu o filme e acreditou na veracidade das palavras da MJN Pinto, não é assim?
Gostaria que tomasse uma posição em relação a isto e que de alguma forma as pessoas que lêem os artigos do POVO fossem esclarecidas em relação a um comentário totalmente errado e perigoso.
Abraço
Paulo Rebelo