O dedo e a lua
DN2010,0322 JOÃO CÉSAR DAS NEVES
"Quando o sábio aponta a lua, o tolo só vê o dedo." Este velho provérbio oriental é um excelente diagnóstico da nossa situação política, financeira, social, cultural, intelectual. O problema latente na atitude portuguesa é, há séculos, sempre criticar o mensageiro sem atender à mensagem.
O drama do consulado de José Sócrates, que monopoliza a vida nacional há muitos anos, é precisamente este. Quando surgiu no topo da cena nacional, em 2005, o sr. primeiro-ministro fez excelentes análises das nossas dificuldades, então atribuídas aos governos PSD. Mas, embora nunca deixando de criticar as mãos que o antecederam, Sócrates apontou a lua. Prometeu reformas decisivas, traçou planos ambiciosos, desafiou os instalados, apresentou coragem e iniciativa.
Em breve, porém, se notou que o Governo deixara de olhar para o céu e se centrava exclusivamente no seu próprio dedo. A questão absorvente era a imagem do Executivo, as críticas dos jornais, a permanência no poder. Multiplicavam-se os cargos nos gabinetes, projectos de favor, favores a amigos. Apesar disso, vivemos alguns tempos preocupados com as questões concretas, défice, desemprego, recuperação. Até começarem as críticas sérias ao Governo. E essas tratavam não da lua mas só do dedo.
As questões que interessavam à imprensa e oposição eram não se Sócrates governava bem mas se a sua licenciatura fora regular. A justiça nos crimes da Casa Pia e outros processos gravíssimos importava menos que o impacto disso nas lutas entre barões. A localização do aeroporto tornou-se mero joguete entre promessas e contrapromessas, esquecendo a discussão de, afinal, o que seria melhor. Só se falava de dedos.
Então, o Governo reagiu e, mais uma vez, em vez de discutir a mensagem, atacou os mensageiros. Nos vários casos, do Freeport à "Face Oculta", da TVI ao Sol, a questão não é nunca a substância da acusação mas a crítica aos métodos usados pelos acusadores. Grita-se e gesticula-se muito, mas a nuvem de suspeita permanece, porque nunca se esclareceu o fundo da questão. Até os próprios problemas da justiça não tratam de justiça, mas da própria Justiça.
Também no Orçamento para 2010 tivemos um exemplo excelente disto. O nosso défice subira muito em 2009 e, sem medidas duras, iria manter-se em 2010. Em vez de tomar essas medidas, tentou-se a esperteza saloia de empolar o valor do ano passado para poder fingir que desce este ano sem grandes custos. Se fosse só para Portugal, a coisa teria passado. O bluff falhou porque os mercados internacionais não ligam a dedos e olham sempre e só para a lua. Qual a reacção do ministério? Criticar Comissão, FMI, agências de rating e mercados. Mais uma vez trata apenas do indicador.
Infelizmente, a tolice básica ultrapassa em muito a deprimente saga política. Esta é mesmo a tradicional abordagem lusitana de insultar do árbitro em vez de chutar à baliza. Não interessa a lua, só o apito que aponta. Não é apenas no Parlamento, mas também nos cafés, que se ouve criticar a pessoa que fala como forma de responder ao que ela diz. É espantosa a quantidade de gente que acha mesmo que denegrir ou mostrar os interesses do orador basta como argumento para invalidar a veracidade e relevância do que afirma.
Na nossa vida cultural e intelectual, a evidência é a mesma. Temos poucos artistas marcantes, autores que perdurem, obras de referência. Mas existe enorme multidão de "agentes de cultura", catedráticos, investigadores, "promotores culturais", "cultos" em geral, que se exaltam e criticam mutuamente. A sua agitação gera muito calor e pouca luz. A nossa intensa vida cultural e científica raramente olha para a lua, limitando-se a comentar os dedos uns dos outros. Nos jornais é pior.
Quando em textos anteriores critiquei os intelectuais portugueses, recebi sempre o mesmo comentário inevitável: isso é também uma autocrítica. Claro que sim. Mas note-se como o comentário é típico de intelectual português: não adianta uma linha à compreensão da questão; limita-se a criticar o dedo que aponta a lua.
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